Amir Haddad
     
 

Amir Haddad
entrevistado pelo escritor João Luiz Pacheco Mendes


A entrevista, a seguir, foi concedida em 03.02.2005, às vésperas do Carnaval. Amir Haddad, um dos maiores encenadores do país, falou a Blocos enquanto finalizava, com os atores do Grupo Tá na Rua, em sua sede, os preparativos para o desfile da Escola de Samba Unidos do Cabral, do grupo C. Contemplou-nos com um depoimento generoso e notável sobre sua obra; relatando como, através de um processo contínuo de questionamentos ideológicos, éticos e estéticos, trocou a sala italiana pelo Teatro de Rua, estabelecendo, a partir daí, uma nova concepção de dramaturgia brasileira, que se expressa em seus trabalhos atuais, ressaltados com paixão: “A Carnavalização do Teatro e a Teatralização do Carnaval”, em parceria com a Escola de Samba, que, afinal, obteve êxito em seu desfile, classificando-se como a quinta de seu grupo, e o espetáculo “Dar Não Dói; O Que Dói É Resistir”, apresentado pelo Grupo Tá Na rua, em praças e ruas do Rio de Janeiro e do Brasil.

Agradecimentos a Thiago Mota, ator do Grupo Tá na Rua, intermediador do contato com Amir Haddad.

JLPM – É sabido que você, insatisfeito com o teatro convencional, optou por desenvolver um novo tipo de trabalho; o teatro de rua. Como surgiu a necessidade de transpor essa fronteira?

AMIR HADDAD – Foi um processo mais ou menos natural e óbvio, da maneira como aconteceu, mas não foi algo previsto; nem, jamais, sonhado. Tudo começou a aparecer dentro de mim como resposta às minhas próprias inquietações a respeito de teatro, espaço, literatura, arte; tudo, enfim. Mas é importante lembrar que estávamos na década de 60, um tempo em que se abandonava, fortemente, as noções convencionais de espaço, e as coisas estavam saindo muito para o meio da rua.

Em teatro, eram de máxima importância questões como a relação do ator com o espectador, bem como a natureza e a situação do espetáculo, para que ele serve e para que se processa. E, tudo isso estava correlacionado com a questão do espaço. O Teatro de Arena, como forma de espaço, havia sido uma criação dos anos 50, e, dali em diante, o espaço foi muito mexido por nós, artistas de teatro. Nós somos os artistas do espaço. Nossa arte se dá no espaço. Nós não temos outro lugar onde concretizá-la. Espaço é relevante e determinante da nossa maneira de trabalhar.

Então, começamos a fazer teatro no palco, na arena, numa sala transformada em outra coisa. Naquela época, era também muito comum ouvir jovens diretores como nós dizer: “Meu sonho é montar Hamlet numa estação de trem”. O que nós queríamos era ocupar a cidade, revelar novos espaços, sair do confinamento ideológico que a sala italiana tradicional significava; romper com tudo. Essa questão passou por nós durante toda a década de 60; até início dos anos 70.

Inserido nesse contexto, eu era mais um jovem diretor insatisfeito com o teatro, enclausurado numa sala italiana - o espaço oferecido pela burguesia capitalista dominante - encenando as comédias de adultérios que a censura permitia, e cercado de pessoas conformadas com aquela situação. Em minhas inquietações, eu percebia que o palco não estava bom. Vendo que o problema não era a dramaturgia ou o ator, já tendo mexido em todo o espetáculo, eu acabava chegando, sempre, à conclusão de que era necessário repensar o espaço, não mais como sala fechada, sob as restrições ideológicas de uma sociedade burguesa branca e protestante, do Atlântico Norte, que ela representa; mas como área de atuação e inserção social, aberta e sem limites. Assim, eu fui para a rua investigar a questão do espaço, e começou uma mudança fantástica, na minha vida. No final da década de 60, tinha o meu Grupo, a Comunidade, no Museu de Arte Moderna, com Paulo Afonso Grisolli, Marcos Flaskman, Tite Lemos e muitos outros. Enquanto trabalhei ali, jamais usei cenário italiano. O espetáculo já não tinha nenhuma verticalidade. A horizontalidade era total. A integração entre arquitetura, espaço, ator e disposição do público, era buscada constantemente. Em 68, eu fazia um espetáculo onde atores e público ficavam absolutamente misturados, numa grande excitação. Era um espetáculo sobre religião . Nós formávamos a primeira geração de Teatro Brasileiro e fomos muito bloqueados pela ditadura. Lamentavelmente, a história da Comunidade nunca foi contada, porque, embora existam muitas histórias importantes, se conta somente a história das dominações como o Oficina, o Arena, O TBC, O Vestido de Noiva.

JLPM – Já, então, não prevalecia apenas o desejo do jovem diretor de encenar Shakespeare na estação?

AMIR HADDAD - Claro. Já não era apenas o espaço estético. Era uma questão ética, política e filosófica. Era necessário romper com o clamor ideológico que nos oprimia. E onde há maior neutralidade política e ideológica do que no espaço aberto, nas ruas? Ali, é possível tentar restabelecer a heterogeneidade da platéia com a qual o artista se relaciona, e quebrar a homogeneidade predominante nas salas italianas, onde se tem como interlocutor, sempre, a mesma platéia, com um único pensamento, em bloco, sem movimento, exceto o de manter o status quo, o poder. Na rua, há a organização social em movimento. Cada um manifesta-se à sua maneira, de acordo com o seu papel, dando ao artista a possibilidade de contato com um extrato da sociedade: o cachorro, o mendigo, o garoto que cheira cola, o policial, a dona-de-casa, o executivo e os que não estão ali, mas poderiam estar - isso também conta.

JLPM – Reconhecido como grande encenador das salas italianas, na década de 60, que tipo de resistência você encontrou quando começou a buscar espaço para o teatro na rua?

AMIR HADDAD – Eu larguei um certo padrão de glória como dirigir para as maiores companhias, trabalhando com os melhores atores, concorrendo a Prêmios Molières. Eu dei as costas para isso. Só nunca deixei de dar aulas, porque elas eram minha fonte de renovação permanente. Mas, quando eu decidi fazer aquilo em que eu acreditava, trabalhar com um grupo considerado amador por fazer teatro experimental, houve quem se desviasse de mim, na calçada, achando que eu era louco. Hoje, a minha opção pode parecer banal, mas, naquela época, muita gente ficou perplexa, pensando que eu tinha tomado um ácido, e não voltei, pelo fato de abandonar tudo o que eu tinha para tocar tambor na Cinelândia.

JLPM – A sua escolha soava esnobe para aquelas pessoas?

AMIR HADDAD – Se, ao menos, eu tocasse tambor com mais classe, talvez soasse esnobe. Mas eu soava mal; soava ignóbil porque eu tocava o tambor com o propósito de recuperar a indignidade perdida. Eu queria recuperar a minha liberdade; não ficar preso a condicionamentos ideológicos do mundo e da educação que eu recebi ou à dignidade burguesa, que é a panela. Ao sair do confinamento ideológico do espaço que a burguesia protestante me oferecia, indo para as praças abertas e livres, eu comecei a recuperar um sentimento do mundo, uma visão de celebração, festa e manifestação, com intensidade jamais experimentada no culto evangélico da sala italiana fechada. Eu me voltei para uma outra realidade.

Quando se trabalha em espaços abertos, começando a entrar em contato com a realidade, a gente sente baixar muito a taxa de dignidade, de ego, de vaidade, porque a questão humana de relacionamento se sobrepõe, muito maior do que qualquer coisa. Por isso, eu não me importava com preconceitos estéticos. Às vezes, mesmo reconhecendo que algum trabalho não era estético, eu retrucava: “mas é ético” e me propunha a seguir aquele caminho até que tudo encontrasse a sua própria estética. E, quando a encontrava, havia a manifestação de uma nova possibilidade.

JLPM – E, no seu encontro com o público, na praça, que tipo de resposta o surpreendeu ?

AMIR HADDAD - Foi surpreendente, ao entrar em contato com as pessoas, perceber a possível sabedoria numa massa supostamente ignorante por não ter sido preparada, nem educada.

Não que eu tivesse ido à rua com o propósito de levar cultura aos pobres. Eu nunca tive semelhante intenção. Não fui levar, generosamente, o meu saber para quem não o tem. Eu não fui salvar ninguém; eu nunca fui evangélico, jamais fui apostolar. Eu fui à busca de interesses meus, pessoais; fui fazer o meu teatro. A bem dizer, era eu quem precisava me salvar, porque estava morrendo, num período de ditadura, pessoas conformadas, coisas regredidas e um controle cada vez maior. A todo tempo, eu me perguntava o que seria um teatro que não fosse cúmplice daquela realidade. Perguntava, perguntava... e quando, finalmente, encontrei a resposta, eu estava lá, no meio da rua, tocando tambor, livre, para sempre!

Na medida em que nos era revelada a sabedoria daquela ignorância, começamos, por outro lado, a descobrir também a ignorância da nossa sabedoria. Meu grupo era, então, predominantemente formado por jovens brancos universitários, de classe média, e, quando o universo ideológico que, quiséssemos ou não, tínhamos em nossas cabeças, começou a desmontar-se, nós nos desarmamos. Houve um processo tão intenso de troca com aqueles outros seres humanos, livres, no espaço da rua, que nos obrigou a rever tudo. Em determinado momento, o que predominava, em nossas apresentações, era o discurso da platéia; não mais o nosso próprio discurso. Nós havíamos percebido que o público sabia muito mais daquilo que nós queríamos falar do que nós mesmos. A partir daí, eu passei a ter visão crítica do mundo em que eu vivia, da educação recebida, dos valores intelectuais e morais, de tudo que me confinava ideologicamente dentro do casulo da sessão de uma classe. Comecei a romper a couraça da ideologia.

A surpresa foi muito grande. Eu recebi, do público, um troco de tanto valor, que jamais teria imaginado receber. Por isso, hoje, quando olho o cidadão carioca, eu o reconheço e gosto dele. Sinto-me bem, apesar de todas as mazelas e dificuldades que enfrentamos, atualmente. É diferente de quando eu me restringia a fazer teatro nos palcos da zona sul, ou, no máximo, do centro da cidade, porque, naquela época, eu não conhecia o Rio de Janeiro. Quando me espalhei, além de conhecer a cidade, eu aprendi a viver dentro dela e responder a isso. Aprendi a agradecer ao público em vez de receber seus agradecimentos. Hoje, levo o teatro para todos os lados, seja uma Escola de Samba, uma praça, uma arena; e preparo atores que sejam capazes de se situar no espaço, como o jogador num campo de futebol, porque tenho perfeita noção de como ele deve se colocar e quais as relações que se estabelecem.

JLPM - Hoje, trabalhando com o Ta Na Rua, qual a sua expectativa em relação ao público? Você tem como objetivo provocar a participação da platéia no espetáculo?

AMIR HADDAD -. Eu gosto de falar com meu interlocutor de maneira que ele se interesse pelo meu discurso. Eu não quero que meu discurso seja hegemônico. Eu não quero falar, convicto da beleza do meu pensamento, sem me importar que meu interlocutor me entenda. Eu busco a maior clareza possível, de modo a fazer chegar ao interlocutor as coisas que eu quero dizer. Eu quero muito que ele me entenda. A comunicação, em si, já é algo bem complicado, e o espetáculo, um passo além, na comunicação. E, como queremos que as pessoas percebam que o que estamos dizendo tem a ver com elas, nós procuramos fazer coisas que sintetizem um sentimento comunitário; coisas que peguem e toquem as pessoas de alguma maneira. Queremos, sempre, encontrar uma ressonância comunitária.

Nosso teatro é muito narrativo. Walter Benjamin disse que o narrador, embora seja uma figura importante, desde Homero, está desaparecendo, na nossa sociedade, porque as histórias comunitárias também estão desaparecendo, e, com elas, os bens comuns à comunidade como um todo. Ou seja, a função do narrador é contar a história que toda gente conhece, mas nossa sociedade tem poucas dessas histórias; tem uma, que é a Paixão de Cristo. Por isso, nós procuramos trabalhar com temas, que repercutam, no público. Não vemos sentido em abordar temas que nos interessem, particularmente, sem nos importarmos com o que as outras pessoas pensem a respeito. Nossa linguagem tem de ser capaz de tocá-las, colocando em movimento seus processos afetivo e intelectuais. A participação pode vir de qualquer maneira: saindo dali, em silêncio, deslanchando milhares de idéias, na cabeça, ou tendo entrado, no meio do espetáculo, e feito uma cena, como muitas vezes acontece. Para isso, nós mexemos em tudo: dramaturgia, ator, espaço.

JLPM – Viajar com o grupo pelo Brasil, trouxe mais respostas novas?

AMIR HADDAD – O Brasil traz resposta o tempo todo, embora, já no momento em que saíamos do palco para as praças do Rio, estivéssemos também saindo para o Norte, o Nordeste, todas as partes do país. Além disso, eu acho que nunca teria chegado aonde cheguei, se já não tivesse dentro de mim uma informação anterior a respeito do Brasil. Eu saí da minha cidade, no interior de Minas, e fui estudar em São Paulo. Era uma época de grande efervescência, a grandeza do TBC, aquela coisa toda. Eu era um jovem curioso. Aquilo me atraiu, incrivelmente. Eu fui ver a magia do espetáculo bem feito, e era maravilhoso. Escolhi o teatro, e, uma vez dentro dele, fui chamado para fazer teatro em Belém do Pará. Eu saí de São Paulo para Belém, aos 22 anos, e o Brasil começou a entrar. Eu fiquei 4 anos no Pará e implantei a escola de teatro da universidade, lá. Aquele período de passagem pela Amazônia e as muitas voltas subseqüentes me alimentaram, enormemente. E, além da Amazônia, as constantes idas ao Nordeste, em viagens de trabalho foram complementando meu conhecimento. Colocando nisso a minha origem mineira, o meu crescimento em cidade do interior, minha formação católica-romana, com as festas e celebrações do calendário da igreja, e, me vendo solto no Rio de Janeiro, agregando ainda tudo o que o Rio tem, o resultado são os espetáculos que eu procuro fazer. Quer dizer; o Brasil nunca esteve fora do que eu fiz. O trabalho que eu realizo, sempre foi perpassado por formas dramáticas populares como os Pássaros de Belém do Pará, os Bumba-Meus-Bois amazônicos, os Maracatus nordestinos, as Folias de Reis, além das encenações religiosas. Um trabalho que eu procurei aprimorar ainda mais por ter sido massacrado, anteriormente, pela ética e estética da burguesia capitalista dominante.

O universo que o Brasil representa já vinha dentro de mim, mas foi preciso muito tempo para eu conseguir romper os bloqueios. Ainda agora acho que é necessário romper muito mais a ética e a estética da burguesia protestante. Nós temos de ir bem mais adiante, nisso. Temos de recuperar a nossa origem mediterrânea,

os povos do norte da África, árabes, gregos, italianos, espanhóis e portugueses; e também os índios da América do Sul. Nós não temos por que permanecer submetidos à hegemonia branca do Atlântico Norte e à cultura religiosa protestante, que são diferentes de nós e da nossa natureza.

Ainda que essa questão pareça utópica e localizada; para mim é vital.

Não é de agora que esse tal de Bush me incomoda. Não é agora que o crescimento de seitas evangélicas me assusta quando eu as vejo atacando Candomblé e Umbanda, e, principalmente quando vejo mulheres e homens negros brasileiros de punhos fechados, paletós, gravatas, corpo trancado, sem mostrar nada; negando sua própria cultura em nome de um ideal religioso. Essa é a expressão maior de como uma cultura religiosa pode massacrar a identidade cultural de outro povo, que não tem noção clara das suas origens. As Escolas de Samba, atualmente, têm dificuldade para montar alas de baianas porque antigas componentes estão se convertendo ao evangelismo e abandonando o carnaval. Num plano maior, é um hemisfério sobrepondo-se ao outro; uma dominação antiga da raça branca, impondo seus valores. O atrito entre Bush e o Oriente é só mais uma expressão da dominação, na qual nós também tomamos parte.

Certa vez, numa visita ao Cairo, embora um pouco abstraído dos questionamentos sobre dominações culturais, eu me sentia como se estivesse em casa, e me dei conta de que tinha esta sensação, em parte, por causa do meu pai, que é árabe; mas, também, porque o Cairo se parece com o Rio de Janeiro das décadas de 50 e 60. Ali, Comecei a lembrar dos filmes egípcios da época do Rei Faruk, que também se parecem com as chanchadas brasileiras. Vendo tantas semelhanças, a gente se choca porque percebe que não está só, no mundo.

Este tipo de experiência também tem ligação com o que faço em teatro, É a questão do mundo em movimento. Não me interessa uma produção estética desprovida de reflexão, adjetivada única e exclusivamente; sem nenhuma ressonância substantiva. Também não quero fazer militância política ou pregação religiosa, nem não acho que o teatro se presta para isso. Mas gosto muito de que o evento, a manifestação, a celebração abra a alma das pessoas e revele o horizonte, fazendo-as perceber que são melhores do que pensam que são, e que podem ir mais longe, apesar de todas tentativas de dominação.

JLPM – E, atualmente, quando trabalha em salas fechadas, você insere, naquele contexto, todas as noções desenvolvidas com o teatro de rua, ou realiza um trabalho à parte?

AMIR HADDAD – Eu não separo, de jeito nenhum, um trabalho do outro. Não há como fazer isso. Às vezes, o meu amigo Boal tenta separar, mas não é bom; não dá certo. Eu vou lá, e proponho resolver o espetáculo com tudo o que eu sei. Não renego o espaço porque estou dentro dele, mas trabalho a relação com o espaço, a movimentação e o jogo do ator de uma maneira totalmente diferente. Não sobrou nada da maneira como eu trabalhava antes. Incomoda-me a sensação do sotaque antigo na linguagem nova. Eu faço, o melhor possível, o que é possível fazer, mas modifico, mesmo. E, só depois disso tudo, eu consegui fazer bem Shakespeare e Molière porque comecei a entender melhor os grandes autores clássicos populares; onde é que eles tocam, em que veias circulam. Se não fosse assim, seria um trabalho realizado sob as velhas restrições, com uma ética boba e uma estética balofa, que acabam tornando esses autores pessoas chatas.

JLPM – Ou seja, todo esse processo implicou uma concepção nova de dramaturgia. Você sente ressonância disso nas novas gerações?

AMIR HADDAD – É preciso ressaltar que, com a vitória da direita e do pensamento neoliberal, nos anos 70, surgiu uma geração nova de artistas, sem conhecimento da história que vivemos. Foi a ascensão da tsunami reacionária, apagando o que fizemos a ponto de, a partir da década de 80, haver diretores que põem tela na frente do palco, para que se enxergue o ator através dela. É o máximo do isolamento, da fobia, da falta de contato, do desespero de falar sozinho, da falta de amor e de encontro. Há um abismo entre o que se pensa hoje e o que nós pensávamos, naquela época.

Lembro que, quando eu era garoto e via, no cinema, aqueles beijos, queria ser artista de cinema para beijar igual. Mas, então, alguém me advertia: “na hora de beijar, eles põem papel de seda transparente, na boca”. Aí, eu imaginava o beijo, querendo tirar o papel. E o teatro acabou sendo algo assim. Perdeu a importância para a sociedade brasileira porque perdeu ressonância comunitária. Deixou-se vencer absolutamente pela televisão, que veio justamente com a finalidade de arrefecer inquietações.

Ainda assim, a questão do teatro remanesceu. Eu, que nunca parei de pensar nessas coisas, não fui cooptado. Hoje, reparo que, na minha platéia, há, sempre, um público muito jovem, assim como a média da idade de turistas que vêm ao Brasil também é muito baixa, diferentemente da Europa, onde os turistas, em geral, são de meia idade. Atribuo a atração desses jovens pelo Brasil à sua inquietação. Eles vêm, aqui, à procura de uma perspectiva de futuro, que não encontram, lá. Da mesma forma, sinto que os jovens da minha platéia buscam idéias novas, e confirmo esta impressão a cada vez que alguém vem ao meu encontro para mostrar-me seu próprio trabalho, realizado após ter assistido a meus espetáculos. Assim, é possível rastrear o resultado do nosso trabalho em muitos lugares do país, como idéia, como conseqüência, como produção de afetos e fatos estéticos novos. E, acho que há uma tendência a que essas idéias se propaguem ainda mais, futuramente.

Mas tudo demora muito. Ninguém estabelece uma verdade nova, em um minuto. No caso de Brecht, os resultados de sua obra só começaram a aparecer depois de 15, 20 anos. Stanislavski e Grotowski também são referências de militância intensa de releitura do teatro. O artista que se propõe a fazer algo diferente da leitura medíocre, convencional, com repetição de procedimentos; interessando-se filosófica e politicamente pela história, tentando recompor os modos de usar e viver o teatro, não obtém resultados com o primeiro espetáculo.

No Brasil, esse prazo é ainda mais dilatado devido à falta de condições. Eu não tenho condições reais de trabalho como, por exemplo, o diretor inglês Peter Brook, que dispõe de um centro, na França, e recebe dinheiro do governo francês para trabalhar. Aqui, é mais demorado. Atualmente, meu trabalho desenvolve-se e sobressai-se, de alguma forma; através de desfiles de Escola de Samba, da minha participação como ator em algumas produções, e dos espetáculos épicos do Grupo Ta Na Rua.

JLPM - Este ano, a Escola de Samba Unidos de Cabral, desfilará com um enredo em homenagem a você e sua obra, ressaltando a carnavalização do teatro e teatralização do carnaval”. Como você começou a desenvolver este tipo de proposta?

AMIR HADDAD - Carnavalizar o teatro e teatralizar o carnaval pressupõe teatro e carnaval juntos. A proposta resultou de um encontro meu com Joãozinho Trinta, quando eu já vinha, há muito tempo, com o Tá na Rua, tentando carnavalizar o teatro, nos movimentos das roupas, nas danças, na relação com a platéia, nos tipos que a gente criava. Aí, o Joãozinho, que também sempre quis teatralizar o carnaval, me convidou para fazer a Ala dos Mendigos da Beija Flor. Foram dois ou três meses de trabalho, com 200 atores, estudando o que é uma narrativa em movimento, o que é o ator que narra e representa, os níveis de comunicação possíveis do ator: horizontalidade e verticalidade. Emociono-me quando lembro a reação do público no momento em que os mendigos entraram na avenida. Houve um silêncio aterrador; afinal, quando já se viu o público fazer silêncio com a entrada de uma Escola de Samba? Mas, em seguida, as pessoas entenderam o que viam, e foi uma explosão delirante.

O fato da Beija Flor não ter ganhado o título de campeã, naquele ano, foi, de certa forma, uma tragédia porque a vitória potencializaria possibilidades de investigação sobre a teatralização do carnaval e o surgimento de novidades nos desfiles dos anos seguintes. Sem ela, o trabalho voltou à estaca zero. De qualquer forma, foi um marco. Nenhum desfile de Escola de Samba, depois daquele, atingiu o mesmo nível de teatralidade e espetaculosidade.

JLPM – A teatralização do carnaval é uma resposta a uma tendência recente à transformação dos desfiles de Escolas de Samba em shows pirotécnicos?

AMIR HADDAD - É uma tentativa de dar profundidade ao desfile, evitando que ele se descarnavalize, ou se torne um show de Cabaré, um Moulin Rouge, Este aspecto tende a predominar, em desfiles, podendo tomar conta deles e matá-los. Também é uma tentativa de consubstanciar o desfile, atribuindo ao ator, ao cidadão, ao ser humano, alguma responsabilidade por aquilo, além de vestir a fantasia.

JLPM – De certa forma, nos últimos anos, tem sido possível perceber tentativas de teatralização nos desfiles de Escola de Samba, particularmente, na apresentação das Comissões de Frente.

AMIR HADDAD – Isso é bom, mas, ao mesmo tempo, um perigo muito grande. Muitas vezes cometem-se desenfoques muito graves, levando para as ruas uma produção de outra classe social, sem perceber, exatamente, o que está nas ruas. Eu já vi, por exemplo, na Beija Flor, componentes da comunidade, homens negros fortes e másculos, dançando nas pontas dos pés, como bailarinos, sob o comando de uma mulher branca, que gritava: “ Attention!...”

Como eu carnavalizo o teatro, fico à vontade para teatralizar o carnaval, mas com muito cuidado para que uma forma não mate a outra. É preciso descobrir o que é o teatro carnavalizado e o que é o carnaval teatralizado. Não se pode fazer teatro, como a Beija Flor faz, com uma dramaticidade tão intensa, que os componentes deixam até de cantar o samba, deixando também de ser narradores comunitários para serem fenômenos, como diria Brecht, que sabem rir e chorar.

Isto é uma forma de teatralização que ajuda a matar o próprio teatro. Se eu saí do teatro para descobrir o que é o teatro, é porque não quero mais usar essa forma necrosada de expressão baseada em possibilidades psico-realistas; que não é a linguagem do grupo social, que nada tem a ver com a linguagem popular.

JLPM - Sendo assim, o Enredo da Unidos de Cabral, este ano, é mais do que uma homenagem a você?

AMIR HADDAD - É uma confluência natural e muito legal . A Escola é pequena, e nós temos interferido na medida do possível. Eu gostaria de ter tido condições de trabalhar mais a Escola, mas este é o primeiro contato. Talvez, no próximo ano, consigamos aprofundar o trabalho. Apesar de não participarmos, totalmente, nós estamos colocando alguma coisa, ali; fazendo uma intervenção ética e estética. A maior parte das pessoas que vai desfilar, já trabalhou comigo ou é meu aluno. Então, eu acho que alguma coisa vai acontecer.

Este trabalho é bom, inclusive, por causa do aprendizado que nos proporciona. O carnaval faz parte do currículo da minha escola de teatro, que se chama Escola Carioca de Espetáculo Brasileiro. Eu gostaria que houvesse também a Escola Nordestina de Espetáculo Brasileiro e a Escola Amazônica de Espetáculo Brasileiro; que fosse possível trabalhar e aglomerar idéias e formas dramáticas específicas de cada região, que são abundantes e diversificadas pelo Brasil afora, em vez de continuar bebendo apenas da fonte do espetáculo europeu, já exaurida; e, assim, descobrir um espetáculo possível para o futuro.

E, depois do carnaval, nós voltaremos ao “ Dar Não Dói; O Que Dói É Resistir

JLPM – E o que significa isto?

É o título de um épico de rua, que conta a história dos artistas em confronto com a ditadura. São 3 horas de espetáculos com mais de 40 atores. Mas, esta também é a máxima do nosso trabalho: dar não dói; o que dói é resistir; por que o ego enrijece, e, até aparecer o verdadeiro “eu”, é preciso mexer muito nas estruturas egóticas, e a resistência é enorme. Então, tornou-se uma regra para os nossos atores, trabalhar com muita liberdade para ir ao encontro dos seus próprios limites. Se alguém não consegue dar, é a resistência que provoca a dor, o medo de se entregar. E, se entregar é fator essencial para quem quer participar de uma manifestação generosa como é o espetáculo teatral; essa organização do mundo, de afeto, sempre generosa, mesmo que seja para falar de uma realidade terrível, É a utopia do espetáculo, e o ator tem que se preparar para fazer o espetáculo.

JLPM – E, que tipo de problemas se enfrenta, ao levar um espetáculo para a rua?

AMIR HADDAD - Botar um espetáculo desse, na rua , é difícil. Há o interesse de quem paga, quem não paga, das pessoas comprarem ou não. São muitos atores, transporte, alimentação, roupa, som. À noite ou à tarde, o espetáculo também precisa de iluminação. Tudo custa dinheiro e não encontramos estímulo financeiro para sairmos. Mas, às vezes vale a pena sairmos. Com a última apresentação do Ta Na Rua, conseguimos um pequeno patrocínio de um projeto do Ministério da Cultura para viajarmos com o espetáculo.

JLPM - É preciso apresentar um espetáculo às próprias custas a fim de conseguir verbas para dar prosseguimento ao trabalho?

AMIR HADDAD - Sim, porque ninguém investe em um trabalho em processo. Só investem em resultados. Nosso trabalho é avaliado como se fosse, mesmo, uma mercadoria.