GILBERTO MENDONÇA TELES
     
 

GILBERTO MENDONÇA TELES - JUCA PATO 2003
entrevistado pelo escritor Luiz de Aquino

LA
— Gilberto, como era Goiás, como era Goiânia na sua adolescência (você, menino campineiro, jogador do Atlético) e juventude?

GMT — Luiz de Aquino, você me surpreende, no bom sentido da palavra: em vez de começar in medias res (no meio da vida presente, como diriam Drummond e os latinos), você me obriga a um simpático memorialismo, que eu não esperava, mas que, confesso, está nos meus planos para breve. Seguindo o destino irrequieto de meu pai, comerciante, ora aqui ora ali, em busca da felicidade que está "apenas onde a pomos / E nunca a pomos onde nós estamos", fui lavando o meu corpo na "bacia" do rio Meia-Ponte, passando de Bela Vista de Goiás (onde nasci) para Hidrolândia, depois subi a corrente do rio na direção de Aparecida de Goiânia, de Brazabrante e de Inhumas. Em seguida, a volta rio-abaixo, flutuando na correnteza: Brazabrante, Hidrolândia, Campinas / Goiânia e as inesquecíveis pescarias em que se foram fazendo a minha adolescência e juventude. Uma bem estreita geografia, no entanto cheia de margens e de mitos, e também de contramargens, de estar na margem, tomando banho ou pescando e imaginando o que poderia estar do outro lado, na contramargem. Fiz uma alusão a tudo isso quando dei o título de Contramargem ao livro que me deu depois o "Juca Pato". Goiás era para mim um vasto mundo, com os seus dois habitantes — Pedro Ludovico e Vargas — visíveis nos retratos do grupo escolar. O resto era uma nebulosa girando em torno de mim que também me sentia girando como um centro giratório. Uma coisa assim, bela e emotiva, meio ptolomaica, mas confusa. Era um desejo vago daquilo que não se sabia, mas doía. Goiânia dos meus catorze anos, quando aí cheguei para prestar o Exame de Admissão no Ateneu Dom Bosco, era a cidade se fazendo, melhor, a cidade-fazenda, cheia de buracos estruturais ( que ainda existem) e de "zebus" que ainda continuam pastando nas avenidas, a prolongar a zona rural na admiração provinciana pela mídia. O melhor mesmo naquela época era Campinas com o futebol do Atlético, a esperança de jogar no Flamengo, as namoradas insensíveis e a mulher da Zona que colava os meus poemas na parede do seu quarto: um dia me enchi de coragem e lhe falei em casamento. “Isso não pode ser ” — respondeu. “Sou mais velha do que você e não quero estragar a sua vida, mas estarei sempre à sua espera”. Nunca mais voltei lá.

LA - E a vida intelectual, a vida universitária? Temos sempre a impressão de que, naquela época pré-ditadura militar, estudantes eram seres muito importantes.

GMT — Vista daqui, do alto das minhas pirâmides, "a vida intelectual " de Goiânia e de meus 20 anos , devia ser menos chata que a de agora, cheia de escritores importantes, cada um escrevendo as suas obras-primas-segundas, ao lado de outras, críticas, que nunca vêm à tona, a não ser para serem premiadas pela academia de que fazem parte. E depois guardadas para o concurso seguinte. Na Goiânia dos meus 20 anos, os poetas se preparavam para ser poetas; os romancistas, idem; os contistas, idem, mas lá estava a presença maior de Bernardo Élis, que os novos olhavam de esguelha, não ousando olhar de frente, como Moisés no Sinai. Os críticos ou eram pomposos, ou ingênuos e simples como um que viu no título de meu segundo livro, Estrela-d' alva, o frescor de "bosta de menino novo atrás da bananeira". Para criar a frase de efeito, ele derrapou no que escreveu. E nunca conseguiu publicar um livro. Até hoje tento me explicar como um menino novo vai fazer cocô atrás da bananeira... Só se for junto da mãe do crítico. Era assim, a "vida intelectual" daquela época. E a "vida universitária"? Ela não existia, no sentido exato da expressão. Goiás criou as suas duas primeiras universidades sem ter a exata compreensão do que seria verdadeiramente uma universidade, e não creio que tenha modificado muito a sua concepção inicial de universidade que ficou sempre uma espécie de "reciclagem" do segundo ciclo, com uma "pesquisa" para fins domésticos, isto é, destinada não a participar da comunidade científica nacional, mas a garantir os títulos acadêmicos para fazer jus ao aumento salarial com mestrado e doutorado. Imediatamente à criação das universidades, católica e federal, surgiram os militares e, pior, os reitores que se esforçaram para ser "mais realistas do que o rei" (ou mais puxa-sacos  e não faziam nada sem consultar diretamente os coronéis do MEC em Brasília. Neste sentido, Goiânia passou a ser o quintal de Brasília. Uma reitora ficou "famosa" por ter sido a única no Brasil a não pagar um reajuste salarial a que os professores tinham direito. Todas as universidades federais pagaram, menos a de Goiás, que só pagou depois, quando já não havia mais jeito de trair os professores. O agente militar do MEC em Brasília havia dito à reitora que não pagasse e ela, com toda a sua autonomia universitária (!), preferiu beijar as plantas da mulher de Putifar, ao contrário do que dizia o poeta. Com relação aos estudantes, creio que deviam ser melhores do que os de hoje, não perdiam tempo com a televisão, com a Internet e com as drogas e, bem ou mal, aprendiam a pesquisar diretamente nas fontes primárias e nos livros. Aprendiam a elaborar o resultado de suas pesquisas, ao contrário dos de hoje que já encontram tudo pronto num site. Assim, eles adquiriam maior consciência da sua função política e social para o futuro do país. Os militares de 64, teleguiados pelos norte-americanos, espalharam no nosso terceiro mundo a idéia do perigo "comunista". Falar de povo, de fome, de reforma agrária, de pobres e de estudantes era falar de "comunismo". Os estudantes eram tidos, na sua maioria, como elementos perigosos, pois se "comprometiam" com o futuro, ao contrário dos fazendeiros, comprometidos com a manutenção de suas tradições. Nesse momento os verdadeiros comunistas se esconderam e "deixaram" estrategicamente professores e estudantes aparecerem no seu lugar. Em Goiás, eles se esconderam ocupando cargos no governo estadual ou grilando terras no norte do estado.

LA — Você presidiu a ABDE goiana e a transformou em UBE Goiás, cabendo-lhe o mérito de instalar a entidade numa sala própria. Conte-nos daqueles momentos.

GMT — O que fiz com a ABDE / UBE no início da década de 1960, meu irmão José Mendonça Teles iria fazer com a Academia Goiana de Letras, instalando-a na Casa Colemar Natal e Silva. Quando fui eleito presidente da ABDE, depois de ter sido membro do seu Conselho Fiscal e de sua vice-presidência, depois de dois anos portanto de aprendizagem, coincidiu que o Banco Lar Brasileiro concluiu a construção do prédio e ia entregar a sala, comprada na diretoria de Oscar Sabino Júnior. Os principais membros da diretoria, como Bernardo Élis (vice) e Regina Lacerda (secretária) achavam que deveríamos alugar essa sala. Fui contra e instalei lá a sede da instituição e, ao mesmo tempo, convoquei uma assembléia para atualizar os estatutos e mudar o nome da entidade, que passou a denominar-se União Brasileira de Escritores, a atual UBE. Muito tempo depois, Bernardo me elogiou por haver feito essas mudanças e instalado os escritores numa sala digna. Quando me candidatei, levado pela insistência do jornalista Jesus Barros Boquady, a " filosofia" reinante era a de que a ABDE só devia ser presidida por comunista. Era assim a intelectualidade goianiense. Ou é ainda assim? Alguma coisa deve ter mudado para melhor, com a UBE se reunindo e discutindo problemas nada provincianos como: O que é ser escritor em Goiás? Como publicam os seus livros? De que vivem? Quem os lê? Seus livros são vendidos em outros estados? Eles (os escritores) recebem auxílio do estado, do município, de algum mecena? Como se relacionam com a mídia? Precisam pedir para publicar os seus escritos? Os jornais lhes pagam ou isto é tido como um grande favor? São naturalmente estudados ou é preciso "convencer" a universidade a pôr algum de seus livros nos cobiçados vestibulares? Enfim, coisas de interesse para a classe de escritores.

LA — Bom, depois disso, você já professor universitário, veio o golpe militar e, com ele, as perseguições que, no seu caso, culminaram com sua mudança... Fale-nos de seus feitos e suas conquistas em outras terras.

GMT — Você me dá oportunidade de desfazer um equívoco, que já vai virando mito. Mas gostaria de esclarecer primeiro que me formei em Letras Neolatinas na Faculdade de Filosofia e Letras da Católica e, mesmo antes de terminar o curso, fui convidado a ser professor na vaga de Waldir Luiz Costa, que lecionava, ao mesmo tempo, literatura brasileira, literatura portuguesa e língua portuguesa. Em 1958 o arcebispo D. Fernando me convidou a fazer parte da Grande Comissão Protetora da Universidade Católica; em 1959 me nomeou secretário da Faculdade de Direito; e em 1960, o primeiro secretário da Universidade. Em 15 de outubro de 1961, na festa do segundo ano de sua fundação, fui convidado a falar em nome dos professores da Universidade, e disse que "Criamos a Universidade no justo momento em que as débeis forças culturais do estado reclamavam para a sua consistência uma nova orientação intelectual e espiritualmente superior ". Você deve estar achando estranho eu começar dizendo isto, que não foi perguntado. Não é exibicionismo, é para registrar que os "historiadores" da Católica vêm sistematicamente apagando o meu nome das origens da universidade, mas isto está nos documentos. Quando se fundou a Federal, a maioria dos professores se bandeou para lá. E o meu primeiro conflito intelectual em Goiânia foi o de ser convidado para a Federal e continuar na Católica. Muitos dos meus colegas achavam que eu deveria deixar a Católica, menos o reitor Colemar, que respeitou meu ponto de vista e jamais me fez essa exigência. Pelo contrário, me requisitou do IBGE e me deu a incumbência de estruturar o Centro de Estudos Brasileiros, sem que eu deixasse a Católica. E foi por aí que cheguei aos atos institucionais 1 e 5. Organizei o Centro, cujos estatutos foram aprovados pelo Conselho Universitário da UFG. Quando eu voltava do Rio, aonde fui levar ao Conselho Federal de Educação o projeto de legalização do Centro, vi a bordo o nome das pessoas atingidas pelo AI-1: meu nome estava na lista. Fui exonerado da direção do Centro de Estudos Brasileiros, mas continuei como professor da recém-fundada Faculdade de Letras. Assim, no início de 1965 recebi do Conselho de Alta Cultura de Portugal (hoje Instituto Camões) o convite para uma bolsa de seis meses em Lisboa, com um vencimento de professor. A universidade me liberou e viajei em março, dois meses depois foi a minha mulher. Em Lisboa, participei de uma série de conferências sobre o Brasil, feita pelos bolsistas brasileiros. Quando terminei a minha exposição, o adido cultural, Odylo Costa Filho, me pediu para visitá-lo na embaixada. Fui e ele me disse que o Brasil precisava de professores para trabalhar em países da América do Sul. Como ele gostou da minha exposição, me pediu se podia indicar meu nome ao Itamaraty. Quando voltei em fevereiro de 1966, já encontrei à minha disposição um convite para ser adido cultural no Chile. Fiquei encantado, mas apreensivo: meu pai bebia muito na época e eu não queria ficar muito longe dele. Foi aí que perguntei se não havia algum posto na Argentina ou no Uruguai. Havia o de professor de literatura no Instituto de Cultura Uruguaio-Brasileiro, em Montevidéu. Ganhava menos, mas era mais perto. No entanto, coisa de que só mais tarde me dei conta, em Montevidéu estavam Jango e Brizola. Os goianos "mui amigos", doidos para pegar o meu cargo de professor na UFG e de certa maneira despeitados com a minha classificação em primeiro lugar no concurso para preenchimento de 4 cadeiras de professor na Faculdade de Letras, começaram a comentar que eu tinha ido para o Uruguai como exilado político. Durante quatro anos consegui vencer esses "amigos " goianos (em alguns deles coloquei chifres... na Saciologia goiana) até que o processo com o meu nome, aliás na companhia de Hermes Lima, foi parar no gabinete da junta que governava. Então recebi o AI-5. Como esse ato discricionário tirava todos os direitos políticos do cidadão, achei melhor não voltar a Goiás, principalmente porque no Rio de Janeiro me ofereciam trabalho, coisa difícil de imaginar em Goiânia. E por aqui estou há trinta e três anos, com longas temporadas em universidades estrangeiras: Portugal, Espanha, França e Estados Unidos. Tenho sido freqüentemente convidado para conferências, como acabei de fazer em março e abril, na Espanha e na França. Há livros meus traduzidos em vários países e aguardo para o próximo ano uma antologia em italiano, outra em francês, outra em búlgaro e outra em inglês. Todas em processo de editoração. Se eu tivesse optado por voltar a Goiânia, teria talvez ficado rico tosquiando os grilos do cerrado.

LA — Mas você nunca se afastou, de vez de Goiás, onde preserva, com muita proximidade, seus laços de família e as amizades intelectuais.

GMT — É isto mesmo, meu caro Luiz. A sua pergunta traz em si a melhor resposta. Ela resume tudo o que gostaria de dizer. Meu espírito nunca se afastou de Goiás. E o interessante é que nunca esnobei Goiás. Onde estou, sou goiano: no Rio, em Lisboa, em Salamanca, em Chicago, em Paris. A ignorância geográfica do carioca se manifesta em pergunta assim: "Gilberto, Goiás está no Mato Grosso do Norte ou no do Sul?" Juro que uma escritora me fez essa pergunta. Sempre que posso venho a Goiânia; venho pelo menos duas vezes por ano para pescar. Tenho por aqui fiéis amigos de pescaria, um dos quais acaba de nos deixar, o Domiciano de Faria. Muitas vezes eu chegava ao aeroporto, entrava no carro dele e, com Jackson Abrão, íamos direto para o Araguaia, onde ficávamos pelo menos três dias, pescando, contando piada, jogando truque e bebendo um bom uísque. Eu renovo assim meu estoque de imagens goianas, do Goiás autêntico que é o do interior.

LA — Consta que você ingressou na AGL na condição de seu mais novo membro, recorde ainda não vencido; o que pensa da AGL, a de antes e a de agora?

GMT — Quando entrei na Academia Goiana de Letras, em 1962, fazia pelo menos uns três anos que ela não se reunia. Seu presidente era o notável romancista de Pium, Eli Brasiliense. Eu morava no bairro do IAPC, no fim da Paranaíba, bem em frente da casa de Erico Curado, pai de Bernardo Élis. Como ele havia emitido para a Bolsa Hugo de Carvalho Ramos um parecer sobre o meu livro Planície, ainda inédito, fui visitá-lo e agradecer o que ele escreveu. Na conversa, falamos da Academia que, segundo ele, precisava de sangue novo. Eu me entusiasmei e lhe disse que ia me candidatar para a vaga de José Xavier de Almeida. Ele imediatamente foi contra: — Você é muito novo, pode esperar. Para essa cadeira vamos eleger o Altamiro de Moura Pacheco, porque ele vai deixar a casa dele para a Academia. Meti a viola no saco, como se diz, e continuei o meu trabalho sobre A poesia em Goiás. Pois não é que morre Erico Curado e eu acabei entrado na vaga dele, creio que bem antes de Altamiro. O certo é que para a minha posse, consegui que a Academia utilizasse o antigo salão da Assembléia Legislativa, no então chamado Palácio da Pecuária, na avenida Goiás, e trouxe de Uberaba o Victor de Carvalho Ramos para me receber. Foi uma bela festa literária que, de acordo com o programa, se iniciou às 9h30 e terminou às 11 horas. Os jornais registraram o acontecimento. A nossa AGL, como todas as academias, deixa (e deixou) sempre a desejar. Elas correm o risco (e isto continuamente acontece) de se tornar somente uma casa de reunião social, de louvação dos acadêmicos entre si. Com relação à de Goiás, creio que lhe falta uma série de ações no sentido do seu relacionamento com a cultura goiana, do seu inter-relacionamento com as entidades culturais do Estado (universidade, associações de escritores, bibliotecas, cursos, concursos que não premiem os próprios acadêmicos:  isto tem sido uma vergonha, tanto para a academia como para o acadêmico premiado). É preciso que a AGL se sinta goiana e, ao mesmo tempo nacional, mas não tenho paciência de explicar isto agora. É preciso que escolha bem os novos candidatos para que não se repita o que vi há pouco, onde os juristas acadêmicos acharam que o mais importante na Academia é a obediência às regras de um estatuto que vem mudando segundo a conveniência de quem está na presidência: se o candidato é da sua preferência, olvida-se a regra; se não, brande-se a regra. Estupidez. A Academia tem de ser maior que seu estatuto, tem de possuir um sentido cultural e simbólico que ultrapasse as regras estatutárias de convivência. Evocar o direito positivo para explicar o funcionamento de uma entidade cultural é a coisa mais antiga e provinciana que ouvi nestes últimos tempos em Goiás.

LA — Você já se candidatou duas vezes à ABL e foi vencido, embora sempre tido na conta de um dos mais expressivos candidatos à Casa de Machado. Vale a pena ser membro de academias? As entidades literárias ainda têm importância?

GMT — É verdade: uma vez obtive 16 votos (precisava de atingir 19). Não contei com ninguém lá dentro para me ajudar. Fiz sozinho a minha campanha e lutei contra um grupo que levantava contra mim as seguintes "considerações": que eu havia sido cassado, que eu gostava de mulher e que eu era muito novo e, portanto, podia esperar mais tempo. Da segunda vez, no ano passado, cheguei aos 18 votos e vencia a eleição se dois votos que me haviam sido prometidos não fossem "comprados" no último momento. Como se sabe, já recebi todos os grandes prêmios da Academia Brasileira de Letras: o "Olavo Bilac", de poesia; o "Sílvio Romero", de ensaio; e o " Machado de Assis", por obra reunida. A sua revista já publicou estudos meus; já fiz algumas conferências nos seus cursos. Convivo com alguns acadêmicos, que admiro, mas não sou de ficar puxando-o-saco de muitos por quem não tenho nenhuma admiração. Veja, portanto, como é difícil a minha entrada para a ABL. Acho excitante a segunda parte da sua pergunta: " Vale a pena ser membro de academia?" Acho que vale, sim. As academias, da brasileira às estaduais e municipais, têm o seu prestígio mítico: quem está longe delas e não as conhece bem dá-lhe uma valor "sobrenatural ", como se estando nela o escritor estivesse por cima do bem e do mal, estando por isso mesmo "consagrado" como o melhor. Mas não é bem assim: o valor literário não conta, e sim o relacionamento que ele tiver com os acadêmicos. Quem está perto sabe da relatividade das academias e sabe que, isoladamente, os acadêmicos às vezes não valem grande coisa, mas agremiados, são muito fortes, tanto cultural como politicamente. Há uma espécie de auto-ajuda acadêmica. Direi, afinal, que as "entidades literárias" têm importância, mas poderiam ter muito mais se cumprissem as suas funções sócio-culturais, tal como disse acima, a respeito da Academia Goiana de Letras.

LA — E a "fogueira das vaidades", ela é forte entre escritores, tal como entre artistas com espaços na mídia? Mesmo entre escritores, existe preconceito de valores, como se viu no recente encontro promovido pela UBE Goiás e a Feira de Livros, remunerando goianos com valores até cinqüenta vezes menores em relação aos forasteiros e os televisivos.

GMT — A pessoa que me convidou por telefone para participar da Feira me perguntou quanto eu cobraria pela conferência. Respondi que me pagassem o normal, isto é, o que fosse estipulado para isso. Jamais passaria pela minha cabeça que iam pagar de acordo com o que a pessoa pedisse e que esse pagamento variasse segundo a maior ou menor participação do sujeito na mídia. Em 1990 critiquei severamente esse procedimento. Veja o último parágrafo do meu livro A crítica e o princípio do prazer, editado em 1995 pela UFG. Ao falar da política cultural do Estado na época, eu disse que "Os planos mirabolantes e demagógicos, com muita carga de provincianismo (e do pior, que é esse de agradar os meios de comunicação do Rio e de São Paulo), vão passando sem deixar marcas essenciais, como os próprios governadores". Agora, sobre os últimos acontecimentos da I Feira de Livros, a minha indignação pode ser lida nas notas ("Provincianas") que escrevi para uma série de poemas a serem incluídos numa nova edição de Saciologia goiana. Eis algumas destas notas que aí vão em forma de prosa: § 1. "Não interessa o que ele falar, o que se conta é a sua capacidade de atrair gente, ainda que seja jovem adolescente, das escolas estaduais, trazidos em excursão para encher o salão da Feira de Goiás." § 3. "Se o escritor é de fora, deve ser também fora do comum o seu cachê para que ele não fique pensando que os nossos bois na invernada não valem nada sem a mídia ou a comédia da TV". § 4. "Nada de comparar o pagamento de um escritor de fora com o de dentro: o escritor local já ganha muito em fazer parte do conjunto e ser convidado como um pária para a feira de zebus da pecuária". § 5. "Outro figurão bem-pago: — Falo, mas não admito nem aparte nem pergunta: a minha arte é rir da boiada toda junta". § 7. "Outra, sonsa, mais poeta ruim do que poetisa, faz de conta que não tem medo de onça, mas vive assuntando a brisa com um ramo de arruda na camisa". § 8. "O mais é a meninada que não sabe de nada, que não quer nada a não ser fazer nada e encher o auditório. Mas antes de dar no pé ir pedir autógrafo ao escritor que ele nem sabe bem quem é".

LA — Em Goiás, muito se comenta desse aspecto que, muitas vezes, chega a ser tenso entre os escritores. O que pensa você sobre isso? É uma marca regional, ou os artistas são apreciadores indefectíveis de seus próprios umbigos? (Não falo de artistas da mídia, mas de artistas verdadeiros, ou seja, os criadores de arte).

GMT — Creio que a minha ironia na resposta anterior serve para dizer aqui o quanto me envergonha esse forma de procedimento dos goianienses. O governo anterior mandou buscar o Ferreira Gullar para comemorar o aniversário dele em Goiânia. Com isto julgava que estava fazendo alguma coisa para a cultura goiana. Ouvi no Rio vários comentários jocosos sobre isto.

LA — E os críticos? Você integra a definição dos críticos de formação, em lugar dos que, outrora, eram tidos como artistas frustrados. Mas, estranhamente, há muitos frustrados entre os críticos acadêmicos; e até mesmo críticos que se apresentam como tal, mas jamais publicaram críticas...

GMT — Meu caro Luiz, tocar neste assunto em Goiás é meter a mão numa casa de marimbondo, melhor, de vespas. Talvez de tanajuras, sei lá, tantas são as "feiras de vaidades". Eu por mim faço o meu trabalho crítico por gosto, por inclinação e por cultura literária. Não tenho compromisso crítico com ninguém. Meus livros de crítica se vendem e se reeditam. As editoras me pedem livros e só não escrevo mais porque não dou conta. Se disto resultar alguma dor de cotovelo, melhor é tomar algum analgésico.

LA — Dizem também que você, que é um poeta sensível, insere-se entre as exceções, isto é, a formação acadêmica não maculou sua verve poética. O que diz sobre isso? É verdade que a técnica pode comprometer ou mesmo destruir o talento inato?

GMT — A minha formação acadêmica serviu de degrau para ampliação de meu conhecimento literário que vem se fazendo há mais de cinqüenta anos, por intermédio da leitura de todos os gêneros literários, do estudo das mais diversas correntes críticas e, hélas!, da criação de poemas e de ensaios de crítica literária. Sobre a interferência da técnica, eis o que penso: Se o poema não tiver técnica, não tem arte, logo, não é poema e sim uma frouxa reunião de palavras que remetem para o comum. Para que haja arte (e poesia, pode não ser a dos teóricos de Goiás), as palavras devem estar altíssima e tecnicamente organizadas. Não há um bom escritor sem técnica, isto é, sem conhecimento da sua arte. Por mais que ele diga e pense que não a tem, que escreve "espontaneamente" (pura burrice de quem não sabe), a técnica está por trás, melhor, entranhada no seu texto, visível a quem souber vê-la, passando às vezes a idéia de uma espontaneidade natural... Um dia me perguntaram se a técnica sozinha produz um bom poema. A minha resposta, publicada, foi a seguinte: Produz. Depende da felicidade com que o escritor desenvolve o seu tema. Mas se a técnica não for, digamos, "lubrificada" com a emoção, é muito difícil que o poema contenha poesia. Atente, porém, para o fato de que a própria técnica pode produzir a sua emoção — a emoção da técnica, do saber, da apreciação. A técnica só existe sozinha na teoria, nos tratados de poética, de retórica, de estilística. Se alguém contestar que isto é puro jogo de palavra, é preciso que ela aprenda que o jogo com as palavras nos ensina a jogar com o mundo, a descobrir o lado lúdico da vida. Assim, o talento inato, como você diz, só vai adiante por intermédio da técnica. Se não, morre cedo, como o de muitos poetas que passam a vida exibindo talento, mas sem deixar nada de concreto.

LA — Como você vislumbra o futuro da ação literária (ficção e poesia) em Goiás? E no âmbito nacional? A poesia brasileira tem futuro?

GMT — A sua pergunta final,  além de dupla, é "futurista", no melhor sentido de Marinetti. Futuro da literatura em Goiás e futuro da literatura brasileira. Por quê não um futuro só, o da literatura? Quando perguntaram a Sartre se ele acreditava na literatura engajada, ele respondeu: "Desde que seja primeiro literatura". E a Mário Quintana alguém perguntou: "Que que o senhor acha da poesia concreta?" E ele, rapidamente: "Tire o adjetivo e estará ressalvada a poesia". Assim, para terminar, repito algo que disse na I Féria do Milho sobre "O mercado do livro no Brasil". Em vez de bobamente ficar discutindo se a mídia vai matar a literatura, o melhor é pensar que a mídia (rádio, jornal, televisão, Internet) representa uma espécie de volta à oralidade, uma vez que no século XX o sentido de democracia e cidadania trouxe para a História grandes massas de semialfabetizados, que não podem ler, mas simplesmente ver, ouvir, como nos áureos tempos gregos, por volta dos séculos VII a VI antes de Cristo, quando surgiu a escrita grega e, com ela, a poesia e a literatura. Há, deste modo, um fascínio da mídia pela própria mídia, que escreve livros para serem vistos, e não lidos. Mas os livros verdadeiros continuam à espera de seus leitores alfabetizados. Pronto, terminei.

Rio de Janeiro, 22 de junho de 2004