GLAUCOMATOPÉIA [#1]

[1] Minha geração literária (que já foi mecanicamente reduzida a um ultrapassado mimeógrafo, embora usasse e abusasse das ampliações em xerox, e patrulheiramente fichada como marginal, embora aproveitasse todo o espaço da folha, frente e verso, às vezes mais frente do que verso) teve tantas baixas prematuras que até pode ser comparada ao romantismo. Mas só à primeira vista, pois, se estilisticamente está mais próxima do modernismo, necrologicamente as circunstâncias são muito diversas da tuberculose em voga no tempo de Álvares de Azevedo: afinal, não foi só a AIDS que matou tanta gente saudosa, como Torquato, Cacaso, Ana Cristina, Leminski, Touchê, Severino do Ramo, Caio Fernando Abreu.

[2] Não morri (para desapontamento de alguns críticos cujos apontamentos são mais necrófilos que bibliófilos), mas estou cego e me incluo romanticamente entre os sobreviventes duma chacina cronológica. Sinto-me, pois, na obrigação de homenagear os que se foram, coisa que resolvi fazer coletivamente, invocando nossos precursores malditos e fesceninos dentro dum departamento editorial que nos caracterizou: a publicação alternativa. Em outras palavras, pago tributo à marginalidade
revisitando, dentro da literatura de cordel, a poesia de bordel. Se os cordelistas são os legítimos precursores dos gibizeiros e fanzineiros (viva, pois, a marginália), os bordelistas perpetuam o fescenino, gênero ao qual me filio e que tem, por aqui, antecedentes em malditos tão ilustres quanto Gregório de Matos (o Boca do Inferno) e Laurindo Rabelo (o Bocage brasileiro).

[3] Entre cordelistas e bordelistas existem, contudo, diferenças importantes que não se explicam do ponto de vista do folheto, do livro ou da oralidade, mas em termos de técnica poética. O cordel tem conteúdo essencialmente narrativo-lendário e, na forma, segue o padrão estrófico da sextilha, enquanto seu padrão esticológico é a redondilha maior; a poesia de bordel, cujo molde é a GLOSA, tem conteúdo satírico e estroficamente se caracteriza pela décima, ao passo que esticologicamente adota a redondilha maior, único ponto coincidente (embora possa variar para o martelo agalopado, como explico futuramente). Claro que se pode glosar em outros moldes, em soneto, por exemplo (Bocage também o fez), assim como o cordel pode se diversificar estroficamente na décima e esticologicamente na redondilha menor, por exemplo. Mas falo do padrão, e num gênero tão tradicional o padrão é patrão, por respeito aos patronos.

[4] Esta coluna pretende ser um laboratório para minhas experiências no terreno da glosa, aventuras que entrarão num próximo livro intitulado GLAUCO MATTOSO, O GLOSADOR MOTEJOSO. Quanto ao nome da coluna, foi uma sugestão do poeta carioca Fernando Fortes, idéia que tem a felicidade de combinar com meus recentes bibliônimos, de CENTOPÉIA a PANACÉIA.

[5] Meus primeiros exercícios foram em cima dos motes mais comuns, em forma de dístico. Como se sabe, o mote às vezes era proposto em quadrinha, mais comum no século XIX, quando Laurindo e seu "professor" baiano (o repentista Moniz Barreto) glosaram muitos casos. Mas no século XX a escola nordestina, formada circularmente a mestres como o potiguar Moysés Sesyom, cristalizou o mote dístico. Pois bem: um dos principais sesyomistas, o paraibano José de Souza, trabalhou vários desses motes, correntes que nem provérbios, que volta e meia são propostos como desafio à capacidade de improviso dos repentistas. Conta-se que, quando propuseram ao Souza o seguinte mote:

BUCETA, CU E CARALHO:
TRÊS INSTRUMENTOS DE FODA.

O poeta se saiu com esta glosa:

Mesmo dentro do borralho
Uma foda dá prazer;
Pra ser boa tem que ter:
Buceta, cu e caralho.
Um cu ao molho, e com alho,
Quem come não se incomoda,
E eu que estou fora de moda
Não pretendo mais foder:
Estou querendo vender
Três instrumentos de foda.

[6] Costumo denominar a glosa sobre mote dístico como QUADRADÉCIMA, pois o primeiro verso do mote recai no quarto verso da glosa e o segundo no décimo. Retomando o mote trabalhado pelo Souza, adotei a mesma persona performada em meus sonetos, cujo masoquismo junta a fome com a vontade de comer, ou melhor, a cegueira com a vontade de lamber (o pé opressor dos que pisam na inferioridade do cego). O resultado ficou assim:
Em vez de estudo e trabalho,
A molecada travessa
Tem três coisas na cabeça:
Buceta, cu e caralho!
Na falta da buça, eu calho
E foder-me a boca é moda
A que a turma se acomoda!
A boca dum cego escroto;
A rola e o pé dum garoto:
Três instrumentos de foda!   [8.70]
[7] A condição de incapacitado, cujo trauma se coroou com a perda total da visão em meados dos 90, veio me reconduzir ao começo dos 60, quando a deficiência visual já me colocava em inferioridade diante dos demais moleques naquela periferia paulistana. Foi evocando a humilhação da infância que compus muitos dos sonetos de CENTOPÉIA e demais volumes da tetralogia. Agora revivo os abusos que sofri (e continuo sofrendo) sob a forma de quadradécimas, sempre retrabalhando motes que outros glosadores tematizaram de ângulo diferente. Desse modo, reafirmo minha individualidade sem perder de vista a seara e a senda, o Ceará e a renda. Olê, mulé rendera! Salve, Virgulino, que foi caolho que nem eu e era Ferreira da Silva que nem eu! Salve, Cego Aderaldo, meu cearense colega de trevas versificadas! Revisitarei todos vocês nesta coluna. Até o próximo mote!

GLAUCO MATTOSO poeta, letrista, ficcionista e humorista. Seus poemas, livros e canções podem ser visitados no sítio oficial:
<http://sites.uol.com.br/glaucomattoso>

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