SACIEDADE DOS POETAS VIVOS DIGITAL - VOL. 2

ASTRID CABRAL - Nasceu em Manaus/AM, e após viver entre Rio de Janeiro, Brasília, Beirute e Chicago, radicou-se definitivamente no Rio. Poeta, contista, ensaísta e tradutora, é licenciada em letras neolatinas pela Universidade do Brasil, atual UFRJ. Possui vários diplomas de inglês, inclusive o T.T.C do IBEU. Lecionou literatura na UnB e foi funcionária do Serviço Exterior Brasileiro. Escreveu: Alameda (contos, RJ, GRD, 1963); e os livros de poemas: Ponto de cruz (RJ, Cátedra, 1979); Torna-viagem (Recife, Pirata, 1981); Lição de Alice (RJ, Philobiblion, 1986); Visgo da terra (Manaus, Puxirum, 1986); Rês Desgarrada (Brasília, Thesaurus, 1994); De déu em déu (poemas reunidos 1979-1994, RJ, Sette Letras/Biblioteca Nacional, 1998); Intramuros (Curitiba, Sec. de Cultura do Paraná, 1998); Rasos d'água (Manaus, Sec. de Cultura do Amazonas/Valer, 2003); Jaula (RJ Editora da Palavra, 2006). Tem obra infanto-juvenil, Zé Pirulito (RJ Agir/ INL, 1982). Entre outros traduziu Walden or life in the woods, de H.D.Thoreau para a Global de SP, 1984. Detentora de inúmeros prêmios, participa de mais de 40 antologias no Brasil e no exterior. Colaboradora de publicações literárias. Sócia-titular do Pen Clube.

Contatos: cabral.astrid@gmail.com
Página individual de poesia em Blocos Online


           Elegia derramada

Careiro

Olhos à retaguarda

     

           Arqueologia sentimental

A casa no breu

Âncoras

 

ELEGIA DERRAMADA
      
Manaus de matinês que sabem a flertes e chicletes,
Chaplin, bangue-bangues, Gordo e Magro, astros a brilhar
nas telas dos cines Politeama, Guarany, Avenida e Éden.
Noturnas madrugadas de sinos, galos e lerdas estrelas,
altura de lua morosa, sobras de chuva pelas sarjetas.
No púlpito da Matriz o padre possesso vocifera contra
comunistas e protestantes e joga as chamas do inferno
para apagar os irreverentes bocejos nos bancos da igreja.
Manaus que acorda com bondes dlém-dlém por ruas de pedra,
resmungo de lanchas pelas barrancas a luzir lamparinas,
ruído de serras a esfarelar lenha pras bandas do Caxangá
bate-bate de lavadeiras limpando as nódoas da vida
nas propícias cacimbas e rasas correntezas do Quarenta.
Manaus cheirando a borracha, bogaris, andiroba e pau-rosa,
pães-de-milho e erva-doce que chegam pontuais às portas
em vespertinas visitas de tabuleiros e cestas de vime.
Verdureiros a vender verdura com o orvalho da véspera
amoladores que negociam o fio das facas e dão de quebra
fagulhas e o fino falsete de metálico mineral gemido.
Manaus de patrióticas paradas, setes de setembro ajaezados
de chapéus, luvas, polainas, pendões, mascotes e balizas.
Bandas alvoroçando praças na filigrana dos coretos, pondo
euforia ou melancolia nos enredos de amor tão cerimoniosos,
arcaicos rituais, platônicas tranças de bem-querer mal-querer.
Bailes e blocos nos sábados gordos e magros dos clubes,
cordões e corsos carnavalescos em carros de capota aberta,
valsas, marchas, mambos-jambos, sambas e frenéticos frevos.
Bodas com banquetes, batizados e aniversários de fartas mesas
transbordando bolos, mães-bentas, babas de moça e biscoitos.
Manaus de eloqüentes, loquazes comícios de loucos rivais
políticos: pessedistas, pessepistas, petebistas, udenistas
e demais alas dissidentes, alto-falantes e rádios bradando
inflamadas falas por salas e becos: avalanches oratórias,
plataformas que se propõem domar o caos e consertar o mundo.
Manaus de portas lojas de turcos, brilhosas fazendas no chão
de vitrines entupidas, vidros de perfume, potes de brilhantina
quinquilharias, peças de rendas sujas, ranço de mofo e mijo.
Bares, joalherias e farmácias belle-époque, requinte e luxo
de mármores e cristais que invadem as escadarias e esquadrias
de solarengas casas num outrora de acácias e buganvílias.
Manaus de banhos e agrestes piqueniques em picadas e igarapés,
passeios em férreas pontes e improvisadas hesitantes pinguelas,
flutuantes que são favelas em baixo-relevo no painel dos rios,
pardas praias em que aportam catraias de relutantes peixes,
cais de diligentes incansáveis guindastes abastecendo a cidade
de esnobes fomes de batata inglesa, manteiga da Holanda,
rubros redondos queijos do Reino, vinhos da França, linhos da
                                                                                                       Irlanda
e mais mil cargas de sonhos e fugas estocadas nos anchos bojos
de vapores tisnados de Europa, vigias fedendo a gringa maresia,
âncoras nas mesmas águas de mendigas canoas e nativos gaiolas,
abarrotados de gente carimbada de impaludismo e miséria.
Manaus de altas mangueiras a compor portais de arcos nas ruas,
a estraçalhar vidraças, impacto de frutas sob fúria de chuvas,
que desmoronam tetos de nuvens e fazem ganir cães vira-latas,
soezes comensais do lixo que fermenta às soleiras sob o sol.
Tardes tarjadas de jururus urubus debruando beirais de casario,
céus que papagaios de papel e tala singram em aladas batalhas
sobre telhados encaronchados e postes floridos de trepadeiras,
galhadas em que papagaios decorebas cantam peremptas cantigas
e desafiam as manhas de macacas de sutiã e calcinha ganhando
o tão difícil dia-a-dia para saltimbancos malandros cafetões.
Manaus de negras águas onde naufrago. Manaus de águas                                                                                             passadas.

André Martins
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Astrid Cabral

 
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