O Cruzeiro de Gravatá

Vi-o, no alto do serro, dominar o espaço,
Bênção do Azul, plantada em pedra na montanha,
Gesto do Céu, tornado em rocha viva, — abraço
Que se descerra eterno e as almas arrebanha.

Era o cenário fosco e pardacento; em volta
Mirrava a Natureza um fulvo sol de brasas;
Rei despeitado e mau, que dispensara a escolta
Da verdura, dos sons, das fontes e das asas.

E na paisagem seca, as árvores cinzentas,
Nuas, traçando no ar um lívido recorte,
Pareciam-me ali forcas sanguissedentas
A farejar o Crime, antegostando a Morte.

Perdia-se-me o olhar na saudade das cores;
Dos recônditos d’alma irrompia-me a fronde
A vestir a nudez dos órfãos de verdores...
Mas a paisagem nua apenas me responde.

Ao longo, ao longo, ao longo, em toda a serrania,
Pardo horizonte quente envolve o olhar faminto,
Rastreia o monte, sobe ao píncaro, assedia
O vale, e morre além num vago labirinto.

Devastação profunda, inondulante pego,
O cabelo da serra é intérmino torresmo;
Cansa o olhar de não ver, porque se sente cego
Vendo, perpetuamente e em toda a parte, o mesmo.

E só, dentre a aridez das cosas, o Cruzeiro
Eleva-se risonho, abrindo os galhos brancos,
Sem folhas e frondoso, inerte e hospitaleiro,
Ensombrando de amor os tórridos barrancos.

No fundo, acinzentado e cru, do firmamento
A silhueta branca enorme se destaca
 E se alonga e se alarga em majestoso aumento
  — Ilimitada luz na imensidade opaca —

No píncaro, pior que o cimo do Calvário
Onde, ao menos, a vista encontra ao longe o Céu,
Onde, ao menos o glabro e límpido cenário
Não tem, para encobri-lo, o desolado véu.

O Cruzeiro germina em seivas e frescuras;
Sonoriza no espaço o múltiplo gemido;
Reverdece a montanha, esmalta a cena escura,
Derrama a fecundez no solo ressequido.

Cantam, por toda a parte, as árvores e as fontes...
E ele estende o seu gesto imóvel e bendito;
Braços de crença ideal, buscando os horizontes,
Vertical de esperança, em busco do infinito.

Ereto, sem temer que o mundo inteiro abale,
Casa em laços de amor, canta na mesma rima
Os olhares fiéis a convergir do vale
E os seus raios de Graça a divergir de cima.

E, por vezes, de tarde, à glória do sol posto,
Desenha-se-lhe em sangue uma visão de luz;
Abrem-se uns braços...

                             Pende um tronco...

                                                   E vê-se um rosto...
— Cristo desceu dos Céus e vem morrer na Cruz

                                                                                               Carlos Pôrto Carrero
                                                                                                                                       Recife, 27-XII-903

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