NADA CONSTA

Não há sinais particulares
e a foto de perfil e sem chapéu
comprova ausência de bigode e barba.
E atesta mais abaixo, na linha pontilhada
onde não cabe a assinatura por inteiro
que meu nome é Manoel.
OK filiação, altura, peso e cor
mas no estado civil houve mudança radical
que ainda não aparece na carteira oficial.

Respeitar as mulheres
e parar o carro para que passem velhos e crianças
e chorar de um poema
nada disto figura na cédula que me identifica
com um número de fácil retenção: 2.800.800
e que me foi oferecido por apadrimanhento político
do qual não me envergonho
pois evitou filas em corredores úmidos
olhares cúmplices
e coisas que acontecem numa delegacia que se preze.

Também o paladar
artistas preferidos
e modo de andar
(sinais que identificam um ser humano mais depressa
que o bigode ou a pinta abaixo do mamilo)
não aparecem no meu pequeno documento de número bonito
e que vai durar mais do que eu
e passear mais tarde por gavetas e caixotes,
classificado entre os objetos do morto,
até que a piedade de uma pessoa forte
queime o retrato, a assinatura
e a data em que tudo isto foi engendrado.

A sugestão aos senhores oficiais de carreira,
sem intenção de atingir seus perfis profissionais,
é que contratem um escriturário-poeta,
muito comum nos cartórios das cidades pequenas,
amigo do farmacêutico,
jogador de xadrez
e amante da mulher do radiotelegrafista.
E que este escrivão identifique as pessoas
à sua maneira e gênio,
dispensando os dados corriqueiros.
E aí então,
em minha lúdica carteira,
numa letra redonda, puxando a perninha do "m"
e dando ao "a" uma grande importância
coloque apenas Manoel
(com "o" se me faz o favor)
e com os sinais particulares do doce-de-abóbora
do uísque
da panqueca
da noite mais que o dia.
Dispense filiação
(que eu sei de quem sou filho)
e no lugar coloque a origem do meu orgulho natural:
de um lado
pai de Ricardo e de um jovem Manoel,
e do outro, no canto esquerdo do papel,
pai de Carolina.

Mas foto, assinatura e impressão digital
já não devem constar do Arquivo Natural.

                                          Manoel Carlos

Do livro: Bicho Alado, Ed. Nova Fronteira, 1982, RJ

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