COISAS

O punhal de prata, punhalzinho, como ele chamava,
com sua bainha de prata e couro puído pelos anos;
a bengala de jantá, elegante e arma mortal, fria
e quente como o ódio, com a premeditação do crime,
que não houve; o revólver, que eu não quero, nunca,
colt, cabo de madrepérola; e a fotografia, cavalo
ajaezado e cavaleiro rude, de polaina, com o cigarro
na orelha, sem chapéu, o que nunca foi seu costume,
o relho pendente do braço, o olhar de caboclo sério,
sisudo como a vida, curtido na roça e na invernada.

Onde foi o canivete de podar parreira, que me furou
o dorso da mão, cicatriz benquista, de memória nobre?
E a machadinha com que eu brincava de índio e de homem?
O machado, a enxada, o alicate preto, que eram só dele,
meu pai? E as vassouras que ele fazia à noite na cozinha?
Coisas que a poeira do tempo subjuga, mas que perduram
comigo mais do que eu vivo, algumas no armário do quarto,
todas no armário da alma. O grito grande chamando a chuva,
que não era um grito, mas uma alma. O grito manso chamando
o meu nome, há quarenta anos e ainda hoje depois de morto.
Coisas que não conhecem o esquecimento, sangram em mim
e sangrarão muito depois que eu me for, mais que morto.

 

 

PENAS

O vôo da árvore sobre o relógio, penas caindo,
animais mortos, coisas secas no caminho e o pó
e um silêncio nas juntas, a espiga da ferrugem:
a solidão da ponte ringe em ruína sobre o abismo.
Quando se abrirem os baús e a poeira da memória
fertilizar o deserto, o corpo, a pedra e os papéis,
ainda não saberei o sentido da viagem ou da volta.

O velho surdo escuta com os pés a fala da terra;
uma falta, de ar e de tudo, se entranha em mim.
Procuro quem sou, de uma a outra parede do quarto;
quebro os óculos e vejo um rio de sangue fluindo
da fechadura, e vem me cobrir as rugas e o bigode.
A árvore cai, com um gemido, sobre o relógio;
ressuscita o cachorro, o bezerro, o milho, a ponte.
A alma viaja e volta, sem as penas e sem a sombra.

                                     José Carlos Mendes Brandão

Do livro: " Presença da Morte", Estação Liberdade/Fundação Nestlé de Cultura, 1991, SP

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