O futebol brasileiro evocado da Europa

A bola não é a inimiga
como o touro, numa corrida;
e embora seja um utensílio
caseiro e que se usa sem risco,
não é o utensílio impessoal,
sempre manso, de gesto usual:
é um utensílio semivivo,
de reações próprias como bicho
e que, como bicho, é mister
(mais que bicho, como mulher)
usar com malícia e atenção
dando aos pés astúcias de mão.

Do livro: "Museu de Tudo" (1966- 1974), in Obra Completa, Editora Nova Aguilar, vol. único, edição org. por Marly de Oliveira, 4ª reimpressão da 1ª edição, 2003, RJ

BRASIL 4 X ARGENTINA 0
       (Guayaquil 1981)

Quebraram a chave da gaiola
e os quadros-negros da escola.

Rebentaram enfim as grades
que os prendiam todas as tardes.

Nos fugitivos, é a surpresa,
vendo que tomaram-se as rédeas

(dos técnicos mudos, mas surpresos,
brancos, no banco, com medo).

Estão presos os da outra gaiola,
que não souberam abrir a porta:

ou que não o puderam, contra o jogo
dos que estavam de fora, soltos.

De certo também são capazes
de idênticas libertinagens

uma vez soltos porém, como
se liberar daquele tronco

em que os aprisionaram os táticos
argentinos, também gramáticos.

E enquanto os fugitivos seguem
com a soltura, a sem lei que os regem,

nos bancos é uma a indignação
dos que vão vencendo e dos que não:

"Voltamos ao futebol de ontem?
Voltou a ser um jogo dos onze?

Voltou a ser jogo de pião?
Chegou até cá a subversão?

Como é possível haver xacrez
Sem gramática, bispos, reis?"

                                   João Cabral de Melo Net

Do livro: "Crime na Calle Relator" (1985- 1987), in Obra Completa, Editora Nova Aguilar, vol. único, edição org. por Marly de Oliveira, 4ª reimpressão da 1ª edição, 2003, RJ

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