Tomei a voz do povo

o povo me chamou e me deu a sua voz
em tom alto expressei
as mágoas que me ferem
a dor que desfalece a alma desta gente
que, em silêncio, reivindica a luz
quando, à noite, a lua não canta em soneto
as agruras deste nosso ser

o povo me chamou para gritar a dor
que o corrói e provoca assédio
entre homens sensatos sem sensatez
que de tanta malvadez
espalham fel pela grande cidade
perdida no neptuno.

o povo me emprestou a sua voz
para cantar músicas sem letras
simular o silêncio do teatro
que a graciosa tão bem compõe
quando a areia branca estende os braços
para trazer, em soneto, a morabeza
e ventilar a grandeza da sua alma

o povo me cedeu a sua vez
para reivindicar
a História
do campo
de concentração
dos presos
da fome
de 47
das mulheres
das revoltas
da independência
da democracia
das cidades de velhos nomes
dos impios
os gordos esvaziados
de jovens em charutos
e dos usuários de tecidos finos
enfim…
da azia.

o povo me deu a sua voz
para julgar gentes que se julgam crentes
que morre lentamente, sem estar doente
de tanto se aquecer no ócio já quer se enriquecer

o povo me deu a sua voz
para calar os que me calam
para falar quando outros se cansarem de dizer
porque mesmo sem falar não me calo
em silencio canto e incómodo
daquele que me cedeu o seu grito

o povo me deu a voz
para retomar os discursos que foram
interrompidos
no tempo em que emperrava a ditadura
e recuperar as últimas frases dos corpos
que foram estraçalhados dessa armadura

o povo me deu a voz
para catalogar os seus heróis
que fizeram sucumbir as ordens dos barões
e ressuscitaram as suas heroicas histórias
nos ouvidos das crianças.

                                                Mário Loff

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