A CativaNos olhos lhe mora,
Uma graça viva,
Para ser senhora
De quem é cativa.
CAMÕESComo era linda, meu Deus!
Não tinha da neve a cor,
Mas no moreno semblante
Brilhavam raios de amor.Ledo o rosto, o mais formoso
De trigueira coralina,
De Anjo a boca, os lábios breves
Cor de pálida cravina.Em carmim rubro esgastados
Tinha os dentes cristalinos;
Doce a voz, qual nunca ouviram
Dúlios bardos matutinos.Seus ingênuos pensamentos
São de amor juras constantes;
Entre as nuvens das pestanas
Tinha dois astros brilhantes.As madeixas crespas, negras,
Sobre o seio lhe pendiam,
Onde os castos pomos de ouro
Amorosos se escondiam.Tinha o colo acetinado
— Era o corpo uma pintura —
E no peito palpitante
Um sacrário de ternura.Límpida alma — flor singela
Pelas brisas embalada,
Ao dormir d'alvas estrelas,
Ao nascer da madrugada.Quis beijar-lhe as mãos divinas,
Afastou-mas — não consente;
A seus pés de rojo pus-me,
— Tanto pode o amor ardente!Não te afastes, lhe suplico,
És do meu peito rainha;
Não te afastes, neste peito
Tens um trono, mulatinha!...Vi-lhe as pálpebras tremerem,
Como treme a flor louçã
Embalando as níveas gotas
Dos orvalhos da manhã.Qual na rama enlanguescida
Pudibunda sensitiva,
Suspirando ela murmura:
Ai, senhor, eu sou cativa!...Deu-me as costas, foi-se embora
Qual da tarde ao arrebol
Foge a sombra de uma nuvem
Ao cair a luz do sol.Do livro: "Primeiras trovas burlescas de Getulino" (1861). In: GAMA, Luiz. Trovas burlescas e escritos em prosa. Org. Fernando Góes. São Paulo: Cultura, 1944.Luiz Gama (*) (Luiz Gonzaga Pinto da Gama, Salvador BA, 1830 - São Paulo SP, 1882)
(*) N.E.: Luiz Gama era filho de escravos, e foi vendido pelo pai, em 1840, por causa de uma dívida de jogo.