Pai MirongaPai Mironga está muito velho, muito velho!
Tem cem anos, cento e dez, ou talvez mais.
Todas as tardes ele vem sentar
à porta da cabana e fica quieto, muito quieto
cachimbando, matutando.
Pai Mironga foi escravo e conheceu
o chicote do feitor.
Seu corpo está sulcado, bem sulcado
das inúmeras lambadas que levou
do branco civilizado...
Ai, aquela cicatriz na face!
Aquela cicatriz que sua mão trêmula
está apalpando! Faz tanto tempo!
Ele era moço, robusto, e um belo dia,
percebeu que estava amando
a caboclinha Jovita,
mucama da Sinhazinha
do engenho "Pedra Bonita",
pros lados de Pernambuco.
O feitor soube do caso.
Hum!... O feitor
que já andava de olho na cabloca!
Oh, Mironga, também queres a Jovita?
Pois toma lá esta lembrança que eu te dou!
Lap! Lap! No rosto de Mironga,
chicote velho zuniu, cantarolou...
O que doeu foi a alma dele,
que apareceu doida de raiva
na janela dos seus olhos.
Apareceu, mas não demorou,
porque não adiantava.
Depois, a perseguição,
tronco, relho, chicotada,
lambada, muita lambada,
lambada sem compaixão...................................................................................
Eh, gente! Que barulhada!
O que foi que aconteceu?!...
Foi nada, homem! Foi nada!
Foi o feitor que morreu!
Ah, morreu? Não adianta!
Vem outro, talvez pior!
Mas veio coisa diversa:
Veio a Princesa Isabel.
Adeus, relho do feitor.
Mironga continuou
no engenho "Pedra Bonita",
mais escravo do que nunca:
escravo dos olhos negros
da caboclinha Jovita......................................................................................
Os anos passaram, depressa, depressa.
Jovita já morreu, o engenho já teve
uma porção de donos.
Todos vêm, todos passam.
Só ele é que vai ficando... Pra quê, meu Deus?
A noite vem chegando. Mais uma noite pra dormir.
Ah, se ele acordasse amanha lá no céu
do lado da Jovita! Que festança!
Pai Mironga vai se arrastando pra rede,
Cachimbando, matutando.
Sopra um vento suave, murmura o rio,
grita ao longe uma araponga.
E a noite estende afinal
o seu manto de escureza,
tão negro como a tristeza
da alma de Pai Mironga.
Sylvio MoreauxDo livro: "O tocador de realejo", Livraria São José, 2ª ed., 1970, RJ