Retrato de Mãe

1

Venham fios de luz, aromas vivos
misturar-se às palavras, à centelha
do louvor mais profundo deste filho
que se depura e sofre com tua ausência.

Venha o trigo do Líbano, a maçã
de que tanto falavas; venha a brisa
tecer, mediterrânea, esta saudade
que vem de ti quando por ti me alegro.

Que venha a primavera, saturando
vales, planícies, colorindo os montes,
noites de luar caiando os muros altos.

Venha a pedra da igreja onde ficaste
quando em febre te ardias. Venham lírios
rebrotados de ti, dos teus martírios.


2


Teus cabelos castanhos, tuas tranças
fazem lembrar as madres de Cartago.
Doce mãe, sombra tépida, murmúrio
de sonâmbulas fontes; poucos sabem

teu nome, enquanto, fatigada embora,
dás-nos o pão, o leite, a flor e o fruto.
Poucos sabem te amar enquanto viva
e, quando morta, poucos também sabem

da fraqueza que em forças transformavas.
Ai, retrato de mãe, quanto mistério
se converte na tímida lembrança

destes álbuns que lágrimas sulcaram.
Na verdade, Ramón, só de lembrá-la
um soluço arrebenta-nos a fala.


3


Lentilha, azeite doce, o acebolado
chia na frigideira de alumínio;
a casa está repLeta de convites
a janta frugal e acolhedora.

Nos arredores brinca o vento; a cerca
divisória, talvez, nada separa.
Vizinhando quintais vozes fraternas
cantam, mandam recados de ternura.

Assim te vejo, mãe, rosto suado
na lida da cozinha ou pondo a mesa.
Terrinas de coalhada, o pão redondo

a recender de ti, mais que do trigo.
Calendário sem datas, chão de outrora
como tudo passou se tudo é agora?


4

Em tudo, minha mãe, te vejo e sinto.
Neste verniz antigo, neste cheiro
Suavíssimo que vinha do teu corpo
do pólen de tuas mãos, do ortelãzinho.

Em tudo, minha mãe, teu vulto amado
se desenha mais firme, e, lentamente,
vem dizer-me aos ouvidos qualquer coisa
destes anos que pesam sobre mim.

Em tudo, minha mãe, vejo este lenço
que à passagem da dor recolhe o traço
do sorriso que foste a vida inteira.

E, mesmo quando morta, entre açucenas,
ainda ressai de ti, poder divino,
a canção que adormece o teu menino.


7

Estavas, posta no esquife, igual a todas
as defuntas convulsas, lapidadas.
Tão branca e tão distante companheira
destes ventos na pausa da agonia.

Quisera ter morrido quando foste,
nave de ti somente, abrindo rotas
na invisória partida, nesse coro
latente em nossas almas. Parecias

dormir, então, liberta como um trono.
Ó lágrimas de Orfeu, tempo escoado,
corpo de insones ânforas, mãezinha,

que sei de ti nos guantes da saudade?
Que sabemos de ti, quando te vais,
se o teu vazio é feito de punhais?

                                       Jorge Tufic

Enviado por Rogel Samuel

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