Percepção e Cognição
                                 
A ARTE DA INTERPRETAÇÃO

Rodrigo Caldas


1. Introdução.

A vida cultural consiste em elaboração de discursos, sistemas de representação e estruturação da experiência, estes os mais diversos e múltiplos, em função do matiz da experiência que representam, subsistindo em um processo contínuo de reelaboração. Os discursos não sobrevivem imaculados e isolados uns dos outros, há uma constante influência, interação, que os enriquece mutuamente, uma permuta que permite um fluxo de experiência desde níveis menos abstratos, até discursos eminentemente formais. A melhor imagem que pode sugerir o que ocorre no seio da vida cultural é o da teia, este ícone representa o emaranhado de formas e combinações de fios e nos de discursos especializados na representação, estruturação e manipulação da experiência; a cultura, como um todo, é uma enorme rede, com vários níveis, de apreensão da experiência. É a experiência que alimenta a ação dos signos (semiose) , uma ação triádica e irredutível.  Este processo caracteriza-se basicamente pela tradução de um signo  em outro, com o crescimento contínuo da experiência do objeto, ad infinitum. Como a experiência dos objetos não é unívoca, os signos também não o são, sendo o discurso a espécie sígnica mais rica porque mais complexa em sua veiculação de experiência. Os discursos são signos declaradamente culturais (nem todos os signos são), são quanto a sua forma lógica dotados de premissas e conclusão, o que irá variar será o grau de credibilidade que une premissas e conclusão. Pensando a vida cultural como um sistema inteligente ( o que ela realmente é), podemos identificar três instâncias bem distintas, mas indissociáveis. Chamaremos de: módulo de percepção (1); módulo de resolução (2); e módulo de ação (3). A percepção está na base do fenômeno de cognição, é a matéria que a alimenta, é o plano no interior do qual a cognição se processa. Se é verdade que não existe cognição sem signo, é verdade também que esta inicia-se com a percepção. Este é o módulo que está na base da inteligência, delimitando a sua esfera de cognição, e na vida cultural consiste em uma de suas matrizes básicas, expressa pelo discurso poético. O módulo de resolução trata da fixação ou dissolução de crenças, é o campo conceitual e abstrato, expressa-se culturalmente através do discurso epistemológico (dialético e lógico-analítico). Já o módulo de ação tem a função de indicar a compatibilidade ou não de uma crença com os imperativos do meio no interior do qual o sujeito se move, o módulo de ação orienta a adaptabilidade do sujeito, na vida cultural é expresso pelo discurso retórico.
A vida cultural, portanto, (partindo deste modelo de organização da inteligência) pode ser reduzida em sua complexidade a três matrizes básicas, das quais os demais discursos são variantes. Uma teoria da cultura que se proponha a pensar a cultura como um sistema de comunicação e padrões de representação, não pode se limitar a identificar e classificar formas sígnicas, embora seja este o passo inicial, mas também descrever o processo de elaboração destas formas sígnicas. Portanto este balanço se sabe incompleto, como não poderia deixar de ser, pois a cultura está em franca elaboração.

2. Cognição: a dimensão sígnica.

Na natureza constata-se a existência de duas ações básicas, segundo Peirce: ação mecânica; e ação inteligente. A ação mecânica é uma ação diádica, uma interação redutível a pares, ação e reação. A ação inteligente é triádica, é necessariamente mediada, irredutível à solução entre pares, processando-se na dimensão sígnica. O que efetivamente distingue a ação mecânica da inteligente é a intencionalidade, extraindo-se daí um conceito de inteligência; como sendo todo e qualquer processo controlável e dirigido a um fim. Assim o conceito de inteligência não se restringe ao cérebro humano, a mediação pode desenvolver-se em outros meios físicos.
A cognição neste quadro é uma ação inteligente, é um fenômeno mediado, deste modo indissociável da ação do signo, a cognição como um processo é controlável e intencional, também constatável fora do cérebro humano, em outros meios que simulem as condições ideais. A percepção está na base da cognição, é da massa amorfa de percepções do sujeito (me restrinjo agora a cognição humana) em um nível primário e imediato que se processa a organização e identificação de padrões no caos perceptivo, esta elaboração de uma morfologia da percepção já implica em um certo grau de abstração, envolvendo signos aparelhados para a representação de tal tipo ou matiz de experiência, os ícones estão na base mais elementar de cognição, signos essenciais na representação de imagens e impressões pictóricas (os ícones não se restringem somente a isto), estes padrões se justapõem em um grau crescente até a elaboração conceitual, signos caracterizados pela incapacidade de comunicação por si sós, estritamente formais, carecem de conteúdo, são como diz Peirce, signos de lei, de comportamento futuro previsível, porque convencionais. O índices, signos que interagem fisicamente com os objetos, são circunstanciais e apontam para a realidade em um dado momento, preenchendo o vazio de conteúdo dos conceitos, conferindo-lhes poder de comunicação (poder que os ícones também possuem). A percepção portanto constitui-se em um nível elementar de cognição, merecendo este rótulo quando o sujeito a percebe como tal, o que indica já a presença da mediação sígnica. A cognição portanto não se dá em um ato, mas se constitui em um processo mediado por várias espécies sígnicas. O que será abordado neste pequeno escrito é o papel da poética na elaboração de sistema de conceitos.

3. Da poética.

A poética é a categoria que trata do “módulo de percepção” , sendo o discurso poético incrivelmente múltiplo e flexível, de certo é dentre todas as formas discursivas a mais livre e expressiva, o discurso poético manifesta-se através das artes plásticas, música, poesia, drama, narrativa de ficção(romance, novela, conto), dança, arquitetura, cinema, fotografia, etc. A poética caracteriza-se pela ausência de regras fixas e castradoras, é livre porque não comporta um elevado grau de abstração, é a categoria da liberdade criativa. A estética é uma ciência normativa que identifica formas e padrões de percepção, filosoficamente é orientada pelo valor do belo, sendo o veículo corrente na vida cultural, dos estímulos e percepções poéticas, o discurso poético (que se especializa nas mais variadas experiências estéticas). O que efetivamente caracteriza o discurso poético e o particulariza das demais espécies discursivas? Sob a perspectiva lógica o mais baixo grau de credibilidade que une as premissas a conclusão; ou em linguagem poética, a experiência poética pregressa e a posterior assimilada. Sob um prisma formal, seria a quase total ausência de forma, daí a impressão de liberdade que a contemplação de um quadro ou fruição de uma música nos suscita. Já sob o enfoque da experiência veiculada, caracteriza-se por ser a forma discursiva que representa a experiência mais direta e sensual possível (sensual no sentido de estímulos sensórios). O discurso poético é o discurso que alimenta a capacidade humana de sensibilizar-se, suscitando a mais infindável variedade de emoções, deve ser o instrumento básico da pedagogia humanista. Este discurso não passa pelo crivo da racionalidade, é o menos controlável dos discursos, explora as potencialidades do inconsciente, do absurdo, daí  certamente ser o mais revolucionário dos discursos, pois subverte a lógica preestabelecida, por subverter a razão é essencialmente intuitivo, direto, e por conseqüência o menos delimitável, definível. A experiência estética é o seu conteúdo, sendo o seu conteúdo irredutível a problematização, conceitos como verdadeiro e falso lhes são indiferentes. A única intencionalidade que o rege é o valor do belo, é isto que nos seduz em um filme, romance, etc.

4. A função do discurso poético.

O discurso poético é dentre todos o mais vital, pois delimita a esfera de mobilidade da ação cognitiva, está a estética na base de toda e qualquer especulação, as dimensões ética e lógica bebem de sua fonte, os gregos já afirmavam que a ética é a estética da existência, e a lógica não deixa de ser a ética do pensamento, a existência em sua instância última é a fruição do Belo, a arte, embora sendo sociologicamente condicionada, é o construto cultural que afirma a funcionalidade do discurso poético como o discurso da transformação, o veículo essencial da verdadeira revolução, é da dimensão estética e na dimensão estética que todo um paradigma pode ser aperfeiçoado, atentemos para o nascimento do século XX, este surge culturalmente por cerca de 1880, com a crise no sistema de representação então vigente e inquestionável, as transformações ocorridas no campo das artes plásticas, a utilização da linguagem visual não mais em termos naturalista (representação fiel da natureza), mas sim explorando as sua próprias possibilidades de representação, dilatando o campo de interpretações possíveis, na arte expressionista com Van Gogh, isto devido entre outras coisas a invenção da foto, mas, em essência, foi uma revolução global que atingiu outros discursos, como: a lógica-matemática (Boole, Frege, Peirce), a física, etc. A função básica do discurso poético não se restringe a delimitar o campo do cognoscivo, mas sim a recriar o mundo simbólico da vivência e entendimento humano, tem o poder de remodelar a capacidade de uma sociedade como um todo de percepção e fruição da vida. A grande característica da cultura produzida no século XX e da arte em especial, foi de ter chacoalhado o sistema de representação em que se constrói, de ter explorado as suas fronteiras, versado sobre sua própria estrutura. Esta é a característica que a literatura de um Kafka apresenta, o que o torna tão relevante, ou um G.G. Márquez, sua relevância não possui implicações apenas para a filosofia da linguagem, mas abre um leque de liberdade entre a obra e o seu leitor ou intérprete, a obra não mais se impõe absoluta, reduzindo o diálogo a uma única direção possível e lícita, mas é uma obra viva que se constrói em sua interação com o leitor, intérprete, o que define a arte do século XX, como afirma U. Eco, é a elaboração da abra aberta, uma obra que expande o seu campo de referência, criando um diálogo vivo porque múltiplo, existe uma possibilidade infindável de fruições possíveis, não há uma fronteira limitável de interpretações, a obra aberta é uma obra que se alimenta de interpretações, recompondo-se em “n” formas, criando não só um, mas vários leitores em potencial, explorando vários planos da experiência estética.
Quando se afirma o potencial revolucionário do discurso poético, não há qualquer referência direta aqui às estéticas positivistas, mais especificamente à marxista, o discurso poético é revolucionário em sua funcionalidade, não é revolucionário por força do ideal estético de uma dada época ou sociedade, a arte que se diz engajada, é talvez a menos “revolucionária” porque prima por uma referência direta a um objeto que se elege como prioritário, real, diminuindo a flexibilidade do discurso, estreitando as potencialidades do diálogo, fechando as portas para novas experiências estéticas, a arte engajada e “revolucionária” é ingênua por ignorar o carácter intrinsecamente transformativo da arte em sua funcionalidade.

5. A literatura como reinvenção da realidade.

O texto literário revela-se em uma tríplice dimensão: sintática, semântica e pragmática, a interação do leitor com o texto, quanto às regras de comunicação e intertextualidade, dá-se no plano da pragmática. Aristóteles classifica os gêneros literários em: lírico; épico; e dramático. Esta classificação pode ser sustentada desde que se compreenda um quarto gênero: o narrativo. O romance se encerra neste gênero. O que efetivamente está na base da criação literária, como se processa esta mecânica? Com absoluta clareza, o texto literário (no caso o romance) oferece ao leitor aquilo que sua educação estética lhe permite compreender, as interpretações possíveis do leitor estão condicionadas, atreladas a sua experiência colateral (esta última expressão Peirceana), mas um texto diz mais do que, por exemplo, o seu criador pretendia dizer, um texto quando imerso no processo semiósico, ganha vida autônoma e própria (daí talvez Foucault ter dito que um escritor escreve para não mais ter rosto), basicamente, em sua mecânica, um romance é uma máquina de criar símbolos, o leitor os constrói, em interação com o texto, à proporção que produz interpretações, estas que renovam a sua interioridade, e o remete ao campo simbólico, do mundo cultural em que vive, transmutado, os homens se compreendem reciprocamente em um sistema de símbolos, criam sua própria identidade e a reformulam, controlam ou extravasam as suas tenções, o romance é assim responsável por uma redefinição da realidade estatuída pelo jogo simbólico das relações culturais, cria novas realidades acrescidas de mais vivências, experiências estéticas.
 
 

Conclusão.

Este pequeno escrito teve por objetivo explorar, em pequena escala, a natureza e funcionalidade cultural do discurso poético, centrado na espécie do romance, uma das muitas formas de manifestação da poética. A experiência estética foi aqui tratada sob uma perspectiva semiótica, revelando a sua natureza cognitiva e potencial revolucionário, bem como sua vitalidade no plano simbólico na elaboração antropológica do conceito de humanidade. Com certeza o discurso poético, não é o discurso da concordância, mas antes o do múltiplo e diverso, o espaço livre da criação, imaginação, certamente a experiência estética que alimentou a elaboração deste texto nem de longe foi compreendida e nem será, pois o gozo da fruição de um romance, e sua experiência, não são perscrutáveis em sua riqueza pela elaboração conceitual.

Rodrigo Caldas

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(1) Semiose é a ação sígnica ou processo de produção de significado.
(2) A triadicidade e irredutibilidade são propriedades da semiose, que é um processo que se dá entre: signo, objeto e interpretante, sendo tal processo irredutível a um desses entes.
(3) Signo é tudo aquilo que representa algo para alguém sobre algum aspecto.

Bibliografia

Delacampagne, Christian. História da filosofia no século XX. Tradução,  Lucy Magalhães.- Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.
Eco, Umberto. A definição da arte. Tradução de José Mendes Ferreira.- Rio de Janeiro: Elfos ed.; Lisboa: edições 70, 1995.
____ . Os limites da interpretação. Tradução de Pérola de Carvalho.- São Paulo: Perspectiva ed., 1995.
Hauser, Arnold. História social da literatura e da arte.- São Paulo- Mestre Jou, 1972-1982.
Santaella, Lúcia. Metodologia Semiótica. Tese de Livre Docência:  Universidade de São Paulo, 1993.
 

Página atualizada em  04 de setembro de 2001

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