DADOS SOLTOS NUM JOGO DE DARDOS
                              Ricardo Alfaya (*)

1. LANCE UM -  Mallarmé: místico, ocultista, obcecado pela idéia do Absoluto; a página em branco como um símbolo do Absoluto.  Palavras lançadas como dados na página, sujeitas aos caprichos estéticos do Acaso. Mas, o Acaso de Mallarmé, tal como num lance divino, é cuidadosamente planejado.  Não em função do sentido, mas da estética. O poeta como artífice.  Busca da Pureza da palavra. Um estado de Pureza que se confunde com o Absoluto. A página em branco, a morte, a vida, o nada, o vazio, onde os dados são lançados, versos, como um grande Big Bang, momento da criação, onde o poeta cria o Universo. O mundo como um "grande livro". Um lance de dados pressupõe um sujeito, mas isso não "abole o acaso". Verso lapidar de Mallarmé: "um lance de dados jamais abolirá o acaso".

2. LANCE DOIS - A palavra come o poeta: Mallarmé escreve e reescreve sua obra. Sofre fortes dores de cabeça. Escreve madrugada adentro.  Professor de colégio, aulas de inglês.  Pensa na redenção pela palavra e na redenção da palavra. A poesia é seu ideal, sua "loucura de Elbehnon". O poeta come a palavra, devora-a, transforma-a, suprime a palavra de seus poemas para buscar a página em branco, o absoluto além das palavras, o espaço. Com isso, toca, sacode, transforma tudo que se pensava até então a respeito de poesia. O alvo é um fundo branco para os dados-dardos, pensamento e insônia.

3. LANCE TRÊS - A palavra é um símbolo arbitrário. Mas é um símbolo. Como bem observa Paulo Leminski, falando sobre o Simbolismo & Cruz e Sousa, esse é o primeiro movimento literário que considera a questão da linguagem, do código enquanto tal. Com isso, por pensar no signo enquanto signo, tomando-o como matéria poética para a construção, à semelhança de um músico quando escolhe uma nota musical ou de um pintor ao resolver qual a melhor cor para sua tela, o Simbolismo inaugura a Modernidade. O significado ou sentido perde o privilégio de ser o "condutor" do poema. Palavras são escolhidas em função de sua adequação gráfica ou visual em relação às demais, como ocorre no soneto em yx, que mereceu, entre outros, um ensaio de Octavio Paz, onde se lê: "Desde a sua publicação este soneto assombrou, irritou, intrigou e maravilhou. À parte as dificuldades sintáticas e de interpretação, o vocabulário apresenta vários enigmas. O mais árduo: o significado de 'ptyx'. Em uma carta datada de 13 de maio de 1868, dirigida a Eugène Lefébure, o poeta confia a seu amigo: 'escrevi um soneto e tenho apenas três rimas em 'ix'; procure averiguar o sentido real do vocábulo 'ptyx': parece-me que não existe em nenhum idioma, o que não deixa de alegrar-me pois ficaria encantado de tê-lo criado pela magia da rima". Mas, quis o Acaso que essa palavra escolhida ao capricho da sonoridade/visualidade tivesse remota origem grega, significando "concha", curiosamente, uma palavra que refere a um objeto que se fecha sobre si mesmo, combinando com o contexto dos versos em que aparece: "(...) au salon vide: nul ptyx, / aboli bibelot d'inanité sonore (...)".

4. LANCE QUATRO - Stéphane Mallarmé, 1842-1898. Simbolista francês.  Leituras/influências que lhe são associadas pelos críticos: Baudelaire, Emile Littré (lingüista e filósofo), Dante, Allan Poe, Richard Wagner, Henry Cazalis, Eliphas Lévy, Bíblia, Tratados Ocultistas, Kant e outros.  Admirado no Brasil pelos poetas simbolistas e pelos poetas contemporâneos, em especial por João Cabral de Melo Neto. Também, pelos irmãos Campos, tradutores de diversos de seus poemas.

5. LANCE CINCO - Absurdo. Outra das palavras-chave para entender Mallarmé. Acaso é ainda o absurdo da existência, o que inclui o Absurdo aparente, como nos sonhos (e como é estreita a relação entre o simbolismo freudiano dos sonhos e o simbolismo literário). A verdade se reduz ao absurdo ou o absurdo é uma aparência, como nos sonhos? A Incerteza, tal como no jogo de dados, é a condição humana por excelência.

6. LANCE SEIS - Foi abolido o Acaso pela Física Quântica? Ficamos a imaginar como reagiria Mallarmé diante dessa nova Física que admite a pergunta/hipótese "Será que Deus Joga Dados?", como no título da obra do matemático Ian Stewart que propõe uma nova matemática na qual "caiu a barreira entre determinismo e acaso". Seguindo igualmente os princípios quânticos, o físico Grichka Bogdanov declara enfaticamente a respeito das operações para formação do código genético: "É preciso insistir mais uma vez: nenhuma das operações evocadas acima pode ter sido efetuada ao acaso. Tomemos um exemplo, entre outros: para que a agregação dos nucleotídeos conduzisse 'por acaso' à elaboração de uma molécula de ARN utilizável, teria sido preciso que a natureza multiplicasse às 'apalpadelas' as tentativas durante pelo menos [...] cem mil vezes mais tempo que a idade total do nosso Universo". (Bogdanov, p. 52, v. bibliografia). Acaso real e, portanto, absurdo ou
acaso aparente e, logo, sincronicidade (Carl Jung), o fato é que, em busca do ômega, Mallarmé produz uma obra poética que, por trás do possível hermetismo, discute uma questão cara à filosofia de todos os tempos. Dentre todos os acasos de seu lance de dados, não deixa de ser notável fosse o poeta acertar o alvo do tema que hoje prepondera nos estudos mais avançados da Ciência: a discussão da possibilidade do Acaso como gênese do Universo.  Ainda que essa hipótese tenda a ser refutada pelo seu alto grau de improbabilidade matemática.

(*)  O autor é jornalista, poeta, escritor e editor do Nozarte Informativo Cultural.  Possui site pessoal em Blocos Online
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NOTA

Texto de originalmente publicado na p. 3, de Blocos Jornal Cultural, n.13, ago/set, 1993, Rio de Janeiro-RJ, editado por Urhacy Faustino e Leila Míccolis.  Ilustrava a matéria poema visual sobre o tema, feito por processo de colagem, xerox e letraset, em preto e branco, por Ricardo Alfaya e Amelinda Alves. O autor refez o trabalho para esta edição "on line", numa versão em cores, utilizando apenas programas de computador.  Providenciou ainda pequena revisão no texto, porém mantendo sua estrutura e conteúdo originais, sem supressões ou acréscimos.  Após as notas, a bibliografia, também constante da primeira edição.

BIBLIOGRAFIA:

1. MALLARMÉ, Stéphane.  Igitur. Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 1985. Trad. José Lino Grünewald, ed. bilíngüe.

2. MALLARMÉ, Stéphane.  Poemas. Rio de Janeiro-RJ.  Nova Fronteira, 1990. Org. e trad. José Lino Grünewald.  Ed. bilíngüe.

3. PAZ, Octavio.  Signos em Rotação. 2a. ed., São Paulo.  Perspectiva, 1990.  Trad. Sebastião Uchoa Leite.

4. STEWART, Ian.  Será que Deus Joga Dados? (a nova matemática do caos).  Rio de Janeiro.  Jorge Zahar, 1991. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges.

5. LEMINSKI, Paulo.  Cruz e Sousa.  São Paulo. Brasiliense, 1983.  Livro da série Encanto Radical, v. 24.

6. BOGDANOV, Igor & GRICHKA, Jean Guitton e.  Deus e a Ciência.  Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1992.
 

Página atualizada em  06 de dezembro de 2002

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