A POESIA E O MITO DE CURA
                           Manuel Antônio de Castro

Enquanto cura, Dasein [Ser-entre] é o “entre” nascimento e morte.
                                                                                 Heidegger. Ser e tempo.

Muitas vezes ficamos perplexos diante do que nos acontece na vida. Estamos sempre à pro-cura disto e daquilo e até, essencialmente, de nós mesmos. O que nos move na pro-cura é a Cura. Cura, do latim, assinala o Cuidado.

A Cura impulsiona todo nosso agir. Agir se diz em grego poiein, de onde nos vem poiesis, a essência do agir, a poesia. Poesia só é linguagem quando se torna verbo-ação-poiesis. Toda poesia nos advém a partir de Cura. É essa a fala do mito “Cura”.

A fala do mito é a linguagem do sagrado, por isso nele agem e falam deuses. O ser-humano (Entre-ser / Da-sein), a poesia e a linguagem pro-vêm da Cura. É o que nos narra o mito Cura. Ele nos foi assinalado por Higino, escravo egípcio de César Augusto, que morreu no ano 10 da nossa era. Eis a sua saga:

C U R A

"Certa vez, atravessando um rio,  Cuidado (Cura) viu um pedaço de terra argilosa: cogitando, tomou um pedaço e começou a fingir/ficcionar (fingere).

Enquanto deliberava sobre o que criara, interveio Júpiter [Zeus].  Cuidado (Cura) pediu que lhe desse espírito, o que ele fez de bom grado.

Quando, porém, Cuidado (Cura) quis dar-lhe nome a partir de si mesmo, Júpiter proibiu e dita que lhe deve ser dado o seu nome.

Enquanto  Cuidado (Cura) e Júpiter disputavam sobre o nome, surgiu também a Terra (Tellus), querendo dar o seu nome, uma vez que havia fornecido um pedaço de seu corpo.

Os disputantes tomaram Saturno [Cronos/Tempo] como árbitro. Este tomou a seguinte decisão aparentemente eqüitativa:

"Tu, Júpiter, por teres dado o espírito, deves receber na morte o espírito, e tu, Terra, por teres dado o corpo, deves receber o corpo. Como, porém, foi  Cuidado (Cura) quem primeiro o fingiu/ficcionou (finxit), deverá pertencer-lhe enquanto ele viver.

 Como, no entanto, sobre o nome há controvérsia, chame-se Homem, pois foi feito de "humus" (Terra)".

No longo percurso do Ocidente, o mito foi uma das produções mais denegridas e desprezadas e, talvez, a que mais sofreu preconceitos. Estes vieram da filosofia, da teologia e da ciência. É uma carga muito pesada e destruidora. E isso impede que escutemos o mito no que ele é como mito. O nome-verbo grego mythos, de onde se formou mito, diz o manifestar pela linguagem. Ocorre que do mesmo radical de mythos se formou outro nome-verbo essencial: mistério. O radical de ambos assinala por isso uma tensão de desvelamento e velamento. Nesse sentido, todo mito figura (fingit) “imagens-questões”. E é como questões e como imagens que devemos ler-e-escutar todo mito.

É o caso do mito Cura. Para ler-interpretar-dialogar devemos de início nos perguntar que questões o mito nos pro-põe. Ora, questão não é conceito. O conceito é uma questão abortada.Todo conceito é um aborto. A questão propõe caminhos, não respostas. As figuras-imagens do mito (p. ex. : Júpiter, Terra, Cronos) são essenciais. E elas se interligam nos sentidos que elas assinalam. Contudo, interessam-nos aqui duas questões fundamentais: O ser-humano como criação de Cura e o que esta faz (fingere). Originário da Cura, o ser-humano se move na pro-cura, como busca das suas origens. São as curas de todo ser-humano.

Por outro lado, diz o mito que Cura, em meio ao rio, vê o barro e “pensando” começa a “fingere”. A tradução por “dar forma” trai o sentido do mito, conforme o entendemos e interpretamos. O que nos leva a afirmar isso? O primeiro verso do poema (arte poética) , talvez, mais famoso de Fernando Pessoa diz:

O poeta é um fingidor.

Esse “fingidor” nos remete para o mito de Cura. O ser-humano surge a partir do "fingere” de Cura. Por isso, o agir de Cura é poético. Como assim? Não diz Fernando Pessoa que “O poeta é um fingidor”? Qual a referência existente entre “fingidor” e “poeta”? “Fingere” é dar figura. Mas para que tal aconteça é necessário agir. Em grego, agir se diz poiein, ou seja: agir. Só que no agir de Cura não se finge qualquer figura, se age-finge o ser-humano. Enquanto originário de Cura, o ser-humano se move já desde a sua origem não só na Cura, mas também no poiein do fingere. Por isso, quando o ser-humano cria só pode criar a partir da sua origem, do vigor que lhe incute a Cura: a poiesis. Todo fingere essencial é poiesis. Esta se move e co-move sempre no âmbito da Cura. Por isso o poeta é um fingidor. É um fingir essencial, onde se faz presente o sentido do agir, isto é, da poiesis. Ser poeta é, pois, fingir/ficcionar movido pela e a partir da Cura.

O poeta não é poeta porque rima palavras em versos nem porque escreve palavras em forma de versos com ou sem rima. O poeta não é poeta porque quer expressar as suas dores subjetivas e pessoais. O poeta não é poeta porque faz versos amorosos ou políticos sobre vivências alegres ou dolorosas, ou engajamentos. O poeta não é poeta porque aprende gramática e sabe usar as palavras numa sintaxe correta e comunicativa. O poeta só é poeta quando faz dessas vivências experienciações fundadas no horizonte da Cura. O poeta é sempre poeta da Cura. Só quando impulsionado e movido e co-movido pelas curas de toda Cura ele finge: e isso é poiesis, isso é ficção, isso é real e verdadeiro.

Viver poeticamente é fingir/ficcionar. Fingidos por Cura nos desdobramos em cuidados

Saímos de nós e nos pro-cura mos nas coisas, nos objetos, nos produtos, no consumo, num envolvimento estético-consumista da vida. E acabamos por nos con-sumir no con-sumo. Esses cuidados não são essenciais. Há sempre uma ansiedade indefinida e nunca satisfeita; uma distância, um “entre”, mesmo na maior proximidade. Pro-curamos nossa origem: a Cura Poética.

Pro-cura mos sistemas filosóficos, científicos, conceitos detalhados e claros do social, do histórico, do destino, do que somos, do que é a vida, o amor, a felicidade, a morte, a dor. E não nos encontramos porque não nos satisfazem. Pro-curamos a auto-ajuda. É mais um descaminho. Sempre há um resto, um aquém ou um além, um incontornável. Há sempre uma ansiedade indefinida e nunca satisfeita; uma distância, um “entre”, mesmo na maior proximidade. Pro-curamos nossa origem: a Cura Poética.

Qual espelho e corpo de ressonância empreendemos como linguagem e diálogo a viagem em busca do que somos no outro. A pro-cura se dá nos desvelos do cuidado/ cura: é a con-vivência. Ela nos torna solidários. Mais. Tecemos ideais, formulamos projetos, nos movemos num impulso de doação e carinho, e chamamos ao outro: meu amigo, meu irmão, meu amor. A rotina do cotidiano torna visível os limites, os defeitos, a diversidade, as diferenças, a não identidade pro-curada, mas sempre em vista. Aos encontros se sucedem os desencontros e a chama da pura doação se vai extinguindo na compreensão de que fazemos do olhar e fala um puro eco do que em nós não acontece: e colhemos a solidão. O diálogo com o outro ainda não é tudo. Solidários-solitários visualizamos e escutamos, para além do outro e do que já somos, o que não somos e pro-cura mos, como penhor de todos os nossos empenhos: ser, sempre em vias de acontecer. Há sempre uma ansiedade indefinida e nunca satisfeita; uma distância, um “entre”, mesmo na maior proximidade. Pro-curamos nossa origem: a Cura Poética.

E então buscamos uma religião como –ismo, na tentativa e esperança de encontrar a plena satisfação num além infinito, numa transcendência de plenitude, numa eternidade em que se resolve e completa toda transitoriedade, falta e finitude. Mas nenhum sistema ou –ismo dá conta do “entre”, incontornável, mas misterioso. Diante do mistério e da onipresença da morte e da dor, da constante transmutação, projetamos uma vida paralela e sempre fora e além de nós. Mas a vida é uma só, em tensão permanente com a morte, véu do nada, enigma que não se explica, só se experiencia. Há sempre uma ansiedade indefinida e nunca satisfeita; uma distância, um “entre”, mesmo na maior proximidade. Pro-curamos nossa origem: a Cura Poética.

Até que cansados ou desiludidos pode surgir o aceno essencial para nos entregamos ao mistério. É o advento do apelo da Cura/cuidado-poético como Escuta. Esta nos cerca, nos invade, nos envolve porque tanto está fora como dentro de nós. Escutamos o outro como escutamos a nós mesmos. É a plenitude possível, mas sempre resta o “entre”. E então nos surpreendemos com o mistério que somos. Não somos o mistério, mas somos no e pelo mistério. E então a pro-cura volta mais plena, mais completa, total. É a Cura Poética pura e simples, porque a sua amplitude vai para além e aquém do infinitamente pequeno e infinitamente grande. Tudo mistério. E então a pro-cura se transforma em apelo da escuta do ser que já desde sempre somos. Um apelo que não sabemos determinar nem definir: Cura. Um apelo que se faz tão presente que se transforma numa presença de proximidade: a presença presente se dá e manifesta no grande e pleno presente que é a presença/ausência. Pura graça e gratuidade. Amar.

O apelo/escuta/ cuidado/ presença se transforma em fala. Uma fala diferente: calma, repousante, de desvelo velado, sem som, de pleno agir, plena poiesis. É a voz velada do silêncio: quando ser é estar sendo o ser. A Cura de toda pro-cura aboliu as diferenças, as oposições, os passados e futuros, as ansiedades e decepções, e se torna travessia poética. Atentos à Cura Poética de toda pro-cura, somos envolvidos pelo apelo que brota da mais profunda de nossa interioridade (“entre”), onde subjetividade E objetividade, dentro E fora, proximidade E distância se dissolvem na integração e unidade da diversidade: todo E é E porque surge do Entre. Então apelo, fala, escuta e silêncio são um e o mesmo, porque somos sendo, para sendo, sermos o que somos. É a Cura / Cuidado. É o Agir / Poiesis. Simplesmente Ser.

A Travessia poética nos é doada em quatro Cuidados.

Somos todos e cada um de nós um ser em liminaridade e complexo, mas unos e harmônicos. Disso nos falam os quatro cuidados essenciais. Compreendê-los é pôr-se em estado de pro-cura e Escuta.

1- O Cuidado profissional : em meio às coisas e outros entes do mundo e no mundo, em meio às relações intramundanas, temos que sobre-viver, pois nos deparamos com a necessidade. Porém, esta é uma doação da liberdade da Cura. No sobre-viver se manifesta o nosso Cuidado profissional como pro-cura de e livre apelo de Cura. O profissional aparece assim como algo essencial, desde que realizado no horizonte da pro-cura da Cura, onde nada se torna formal, funcional ou mecânico, mas apenas e tão somente como uma faceta e possibilidade necessária do livre apropriarm0-nos do que nos é próprio, sem cair no impróprio e no estranho. Ele se expressa como trabalho e co-laboração, que manifestam nosso ser livre, porque fundados na Cura. No e pelo trabalho advém a linguagem. E somos como cuidado profissional no e pelo trabalho/linguagem da Cura.

2- O Cuidado   afetivo : todo cuidado aponta para uma possibilidade, porque somos fundamental e essencialmente um diálogo, onde um eu e um tu fazem da con-vivência uma pro-cura afetiva e efetiva de realização com o outro/a como oferta e apelo da Cura. A convivência se inscreve no originário inaugural de Eros, no vigor do qual nos realizamos como compaixão, fraternidade e amor. E fazemos de Eros a livre realização de Thanatos. O cuidado afetivo é o que nos afeta, concerne e inter-essa em todos os nossos empenhos e desempenhos de ser e não ser, dialogando. Ser afetivo é ser atraído pela Cura enquanto penhor de todo Cuidado de e na com-vivência e amor . No horizonte de todo afeto nos apropriarmos do que nos é próprio como medida e diálogo, a Cura , reunidos na e pela linguagem da Cura.

3- O Cuidado sagrado : o sagrado é o originário de todo mito, de toda poesia, de toda religião, dando-se e manifestando-se nos ritos, nos poemas, nas liturgias. O mítico e o poético como palavras manifestativas trazem já dentro de si o mistério, o que como silêncio possibilita toda fala e escuta. A pro-cura do poético é o cuidado que nos projeta nos caminhos do mistério, atraídos pelo que ressoa e se faz presente em nós como voz da linguagem, que se retrai enquanto oferta de memória e tempo originários, a Cura . A Cura é o que se cala e fala em tudo que se diz e se quer dizer. O sagrado mítico-poético é a experienciação do mistério da voz do silêncio. Nela, o Cuidado do sagrado se dá como escuta da voz da linguagem da Cura.

4- O Cuidado do pensamento: pensamento é uma questão de experienciação na e de Cura. O cuidado do pensamento nos envia nas vias de ser, crer e conhecer, e espera pela Escuta do Silêncio, que é a linguagem para além do lógico e ilógico. O cuidado de pensamento é a obediência (ob-audire ) à Cura, enquanto proximidade e vizinhança do Nada. Nele nos advém a alegria na dor, o amadurecer plenificador no sofrimento, eros e tanatos, a realidade nas peripécias da realização do pensamento. A Cura do pensamento é atração incessante do que se retrai como vigência do Não-ser em tudo que é. O cuidado do pensamento é a tarefa – pensum – que nos foi destinada enquanto ação integradora e apropriadora do que nos é próprio. Nele e por ele a Cura nos advém como linguagem do pensamento da Cura.

Cada cuidado pode realizar a CURA de alguma maneira, porque não somos um bolo dividido em quatro pedaços. E cada cuidado tem a sua doçura. O amor é a simplicidade e ciranda dos quatro, na qual cada um alegremente se dá e retrai de modo di-ferente. No e pelo amar se dá toda Cura. É o que nos diz toda experienciação de poiesis.


Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe      
      quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

                              Fernando Pessoa

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Nota. Pro-curamos ler e dialogar aqui com o mito de Cura do ponto de vista onto-poético. Apenas chamamos a atenção para o fingere, enquanto fazer poético, poiesis. Um diálogo mais a-curado deveria con-vocar as demais imagens-questões (deuses): Céu, Terra, Tempo e Rio. Contudo, o ensaio ficaria muito grande. E além disso aguardamos o kairós, o tempo apropriado. Estas reflexões foram impulsiondas e pro-vocadas pela interpretação e diálogo ontológico que Martin Heidegger empreende com esse mito na sua obra-prima: Ser e tempo. O leitor pode consultá-lo no § 42. Petrópolis, Vozes, 1988, Parte I. 

O autor do presente ensaio é Prof. Dr. Titular de Poética, na Faculdade de Letras da UFRJ. Site do autor: http://www.travesiapoetica.com

Página atualizada em  17 de janeiro de 2005

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