A POESIA DE MURILLO ARAUJO

Anderson Braga Horta

           Murillo Araujo figura entre os escritores que, aluindo obstáculos, limpando o terreno, batendo caminhos, iniciaram o curso revolucionário em nossas letras, não muito depois de rompido o século. Teve, entretanto, com uns poucos outros pré-modernistas de destacado valor, a fortuna de assistir ao coroamento do processo e de seguir colaborando nele.
           Jorge Amado, abrindo o primeiro volume dos Poemas Completos desse mineiro do Serro, reclamava atenção sobre ser um processo, antes que inopinada explosão, o nascimento do Modernismo:

"Acontecimentos e homens, autores e poemas, prosa e estudo," – dizia – “prepararam o terreno, fizeram o caminho que conduziu à Semana de Arte Moderna.Como esquecer, por exemplo, Adelino Magalhães? Ou como esquecer este poeta Murillo Araujo que, aos dezoito anos, já trazia em seus versos as sementes da nova mensagem?"  1

           Já Augusto Frederico Schmidt afirmara que, "bem antes da Semana de Arte Moderna, bem antes de Klaxon e da conferência de Graça Aranha, .... Murillo ‘criava o seu ritmo livremente"'. 2
           Formalmente, o aporte revolucionário deste poeta estimável se limita à fase preparatória. Depois do dizer novo e forte de um Mário, de um Oswald, suas ousadias como que empalidecem: ultrapassou-as o tempo, a ponto de apenas as repetirem, hoje, composições saudosistas ou bem-comportados exercícios de versificação. (Não digo isto para diminuir sua contribuição, mas tão-somente para situá-la. Posso dizer de tais ou quais formas poéticas que estão historicamente ultrapassadas. Mas, de um poeta que em verdade o seja, intrinsecamente, isto é, enquanto criador ou descortinador de beleza, não. Porque esse tem comunhão com a eternidade. Assim, distinga-se, aqui e alhures, entre o veículo historicamente superado e a singularidade, a unicidade de determinada criação.)
           Formalmente, pois, Murillo Araujo se deteve no pré-modernismo. Praticou insistentemente o poema polimétrico livre, 3 com bastante regularidade o poema isométrico, mas não chegou jamais ao verso livre (não, pelo menos, se adotamos, quanto a este, o rigoroso conceito bandeiriano, exposto no Itinerário de Pasárgada). 4 Com freqüência, mesmo o seu poema polimétrico só o é na aparência gráfica, revelado uniforme à leitura. Exemplo extremo, colhido em As Sete Cores do Céu, é o “Canto da Alma Flutuante”, 5 que seleciono menos pela tipicidade do que pela ressonância de Junqueiro e Vicente de Carvalho nos cantantes e dolentes hendecassílabos:

"Nesta madrugada
de lua alta e cheia
como bóia esta alma pela luz levada:
Branca como um trapo que no mar ondeia
nas marés da lua vai desamparada.

Alma escuna,
escuna de jornadas épicas!
Só partiu da duna
para achar maléficas
secas e invernias, calmaria e incêndio,
bancos a estibordo,
saques de corsários como um vilipêndio,
desespero, peste, rebelião a bordo!

Alma exul que sangra
pelo que sonhara!
Nunca viu à proa as Rocas do Tesouro...
o amor que é lindo como um poiso de angra,
a alegria – praia de conchinhas ­
clara...
e a vitória – gruta de basalto e de ouro!

Nesta madrugada
quando a luz escorre
quando a luz dos astros num adágio
morre –
como bóia esta alma pela luz levada
nas marés da lua
que, perdida, corta!

De bubuia voga sob os astros, nua,
como um trapo branco de naufrágio
– morta."

           Os versos de nove e de onze sílabas tornar-se-iam mais e mais escassos, à medida que se fossem impondo os novos cânones (à parte a reutilização que deles fariam poetas, qual o neo-romântico Augusto Frederico Schmidt, por alguns classificados já como pós-modernistas). A razão do abandono é, decerto, a vigorosamente marcada estrutura rítmica desses versos. Murillo não precisou relançá-los, porque nunca os abandonou. Igual fidelidade dedicou à nobreza e ductilidade do decassílabo, à plebéia e fresca naturalidade da redondilha, ao grave langor do octossílabo, também, como no exemplo há pouco lido, muitas vezes mal disfarçados pela quebra gráfica do verso. Os alexandrinos estão entre os de sua preferência, e escande-os à francesa ou à espanhola; ou os constrói trimembres, com ou sem cesura medial, à maneira dos simbolistas, quando não prefere o dodecassílabo atípico (mais raramente, e, se não generalizo com erro, em composições polimétricas).
           Bela utilização do alexandrino espanhol nos mostra uma das primeiras peças do livro de estréia (Carrilhões, de 1917), por ele escolhida para abrir a edição dos seus poemas diletos. Refiro-me a “Invocação”, 6 poema em quatro dísticos e duas rimas cruzadas, todos os versos com cesura sobre vocábulo proparoxítono, que diria perfeitamente construído, não fôra o descritivo e o romântico da primeira metade. A restrição – porventura impertinente, ou fruto de exacerbado formalismo – não quer diminuir, nem o poderia, o brilho destes versos, que releio com gosto:

"Lua elevada, límpida... trêmula e taciturna,
és lua, a garça olímpica, pássaro da ilusão!

Lua, és polida e diáfana... Placa espelhar noturna,
serves de espelho mágico para a Saudade! não?

Lua de paina alvíssima – paina a florir soturna,
que arminhos teus levíssimos hoje me afagarão?

Lua de sonho e mármore! Branca e inefável urna,
derrama-me o teu bálsamo! traze-me a solidão!"

           Às preferências formais enunciadas ou implícitas acrescentemos a prática do antiparnasiano hiato.
           Tenhamos em mente as características gerais do poeta, apontadas por Alceu Amoroso Lima, com a argúcia e elegância habituais, em precioso ensaio:

             “.... predomínio do elemento subjetivo sobre o objetivo; da inspiração sobre a técnica; da sentimentalidade sobre o intelectualismo; da imaginação sobre a observação; do individualismo sobre o ambientismo; do nacional sobre o cosmopolita; da melancolia sobre a euforia; da idealidade sobre a sensualidade; da solidão poética sobre o engajamento social; do comunicativo sobre o cifrado; do eloqüente sobre o conciso; do espírito substancialmente cristão sobre o neopaganismo".

             Releiamos o que sobre poesia diz o próprio poeta:

1.º) no pórtico de A Escadaria Acesa (cito os dois últimos fragmentos):

"Creio na Poesia, alma eterna do mundo...
          mas na Poesia essencial;
          não nos versos prosaicos, golpeados de chistes, cepticismo
          sem força de alguns povos cansados, impróprio em terras
          virgens e almas novas.

Creio na Poesia santa, nessa infância do espírito, orvalhada de estrelas...
na Poesia piedosa, que se inclina, fraterna, sobre os pobres destinos;
e que estende do céu, para nossas angústias, uma escadaria acesa."  7

2.º) no pórtico de A Luz Perdida (transcrevo os três primeiros parágrafos):

     "No bosque tenebroso do tempo há uma luz distante
que as ventanias não apagarão.

     É a poesia que vence o mal.
A poesia límpida. Não uma arte cerebral, fria e seca,
brilhante às vezes... mas de matéria plástica.” 8

3.º) na página final de A Arte do Poeta :

     “.... o interesse, como a exatidão, não tem os ares
puros do país da Poesia.

          E onde está, pois, esse país?

          Podemos dizer apenas que é um país triste ou alegre,
porém nunca impassível;

que é mais distante do que próximo;
mais do mistério que da certeza;
mais do dinâmico que do estático;
mais do ignoto que do comum;
mais do profundo silêncio que do vazio rumor;
mais do passado que do presente;
mais da morte talvez que da vida.

 Quando vemos, tendo os olhos úmidos, que uma névoa luminosa muda o aspecto do mundo, que as formas fogem, irreais, que o silêncio é sonoro, que o mar rola ondas de astros e que, em caminhos que sobem, passam anjos sorrindo – reconhecemos logo o bom Reino do Poema, que faz fronteiras com a Vida.” 9

            Ao fim, podemos entender a afirmação do ilustre ensaísta, de que “a evolução poética de Murillo Araujo não comporta nenhuma revolução, mas antes uma lei de constância original simbolista, com poucas variações”, e de que o poeta atravessou apenas o modernismo,"dele tirando – palavras de Murillo Araujo –

“a liberdade de criação e de forma;
a síntese de expressão;
o dinamismo;
a surpresa estética;
o apelo ao subconsciente;
o conceito da poesia pura;
a abolição da retórica”, 10

mas alijando "tudo aquilo que chamou de 'desvirtuações do modernismo', que enumera nas páginas seguintes e representa uma rejeição de quase tudo o que se fez depois do modernismo, como superação do modernismo". 11
           Peço licença para dizê-lo de outra maneira, com algum acréscimo mas, acredito, sem nenhuma contradição (de resto descabida) à palavra do grande pensador e crítico brasileiro. Acho que a presença de Murillo Araujo no Modernismo significou, sim, uma projeção de valores formais e essenciais do Simbolismo. E vejo nela como que um gene da disciplina e da elevação espiritual, de certo modo e até certo ponto recessivo nos inícios turbulentos e materialisticamente realistas, mas presente e apto a eclodir, de futuro, como caráter dominante nas mais altas organizações poéticas.
           Curiosamente, um dos traços mais “modernos” da dicção muriliana é a ectlipse. Não a queda do m na preposição com, antes de vogal, comum nos clássicos portugueses. Falo de outros casos, em particular da espécie, mais radical, consistente na supressão da nasalidade e na univocalização do ditongo em certas formas verbais (fizero, por fizeram ; ame, por amem ; etc.). É fenômeno corriqueiro em algumas regiões do País, incorporado à língua literária por mais de um poeta culto, mas inesperável – se não cometo engano (e sem esquecer sua antiguidade, pois que se encontra já, por exemplo, n' Os Lusíadas ) – em autor da origem e da formação de Murillo Araujo.
           Outro paradoxo: onde sua dicção, em geral, se afigura mais consentânea ao Modernismo (exceto alguns poemas de outro tom integrantes de A Iluminação da Vida) é em composições menos distanciadas de um neoparnasianismo: "Toada do Negro no Banzo”, “Os do Engenho Colonial", "Funeral do Rei Nagô", 12 de inspiração negra ou ameríndia, onde a acuidade de Manuel Bandeira logo distinguiu, "malgrado os manifestos antiprimitivistas de Festa, o aproveitamento artístico do caçanje". 13
           A propósito desses poemas, cumpre registrar que autores como Adonias Filho, 14 Marques Rebelo 15 e Péricles Eugênio da Silva Ramos 16 vêem neles uma das notas mais originais de nosso poeta, asseverando o primeiro que "A Macumba Zabumba" introduz "a temática negra no ciclo modernista".
           Mas a nota dominante de sua sensibilidade parece-me afinada ao puro diapasão da infância. Daí seu claro pendor para uma poesia "infantil", nos termos de A Estrela Azul  ("Três Estrelazinhas", "Longe, no céu Poente", "A Procissão dos Caminhos"...) 17 e mesmo de poemas doutros livros, como "Canção para uma Sombra”, de A Escadaria Acesa. 18 Nesses, no "Soneto da Alta Magia", em "Os Sinos Fogem esta Noite", ambos de A Luz Perdida , 19 e em tantos mais, o poeta, que é também músico e desenhista, funde ludismo verbal, invenção rítmica, fantasia narrativa, cor e melodia numa poesia mágica, poesia que nos reconduz ao mundo encantado da infância.
           Não pretendo e não posso aprofundar-me em demonstrações, mas, de quanto venho afirmando – sem pretensões de originalidade –, algo devo ilustrar com criações do poeta. Leio, de A Estrela Azul, obra destinada às crianças, "Longe, no Céu Poente":

"Lá longe, perto do céu,
lá longe, no fim do mar
há um incêndio, um fogaréu, 20
uma floresta a queimar?!

– Não, não! É um palácio de ouro,
de ouro, de ouro –
à flor do mar!

Por sobre as águas rolando,
branquejando, uma por uma,
passam nuvens a boiar...
nuvens branquinhas saltando, 21
nuvens branquinhas de espuma
sobre as águas a rolar?!

– Não, não: É um cavalo solto
que vai sem freio, revolto,
crina branca à flor do mar!

Quem me dera ir galopando
nesse cavalo espumando
e entre os ventos a voar...
galopando, galopando
até o palácio cor de ouro,
todo de ouro, além do mar!"

          De A Escadaria Acesa, livro "sério", leio trechos da "Canção para uma Sombra", construída em torno de um conto infantil:

"A grande amada cujas primaveras
florescem rosas na minha ânsia triste
é alguém de outros países...
de outras eras...

A grande amada é alguém que não existe.

..........................................................................

Num hipogeu, decerto, entre ouro e mirtos
dormem seus olhos que iam ser meus prêmios.

Os pés mignons são passarinhos hirtos;
as mãos em flor lembram dois astros gêmeos.

Acorda, acorda, oh Bela Adormecida!"

.........................................................................

          De A Luz Perdida , 22 outro livro “adulto”, "Os Sinos Fogem esta Noite" (fragmentos) :

“.......................................................................

Os sinos da igreja morta
fugiram do campanário!
Saltando por sobre a porta
farandulam pela rua.
Os sinos da igreja morta
estão gritando: aleluia!
Reviveram.
Reviveram!
Reviveram pela lua.
Dormiram mais de mil anos,
desmoronados e sós.
Ninguém, ninguém, por mil anos,
escutou a sua voz.

..........................................................................

E brincam! Estão brincando
sem ver que deram as onze!
E fazem roda, rodando
os seus saiotes de bronze.

..........................................................................”

            Deixo para última leitura, sem outro interesse que o de recordar um límpido momento de nossa lírica, esta "Canção da Lua que Lava":  23

“Lua, que lavas teus linhos,
sempre a lavar
numa lixívia de nuvens,
branca, branquinha de espuma,
e escorres tudo lá no alto
para secar;

lua que lavas teus linhos
pelos valados maninhos,
na serra onde vai nevar;

oh lua alagando o mundo
nesta espuma de cegar!

lua que lavas teus linhos
e que os enxáguas
e os pões em qualquer lugar –
nos terraços lajeados,
nos velhos muros caiados,
nos laranjais do pomar
ou nos campos orvalhados
onde estão a gotejar –
lua que lavas teus linhos
até nas praias do mar –
vem, lua, e lava minha alma!

Oh lava minha alma em lágrimas,
para que Deus, sol das almas,
venha a enxugar".

           É hora de proferir as palavras finais desta homenagem. Creio que podemos agora, relembrados esses aspectos de sua poesia, resumir em dois ou três parágrafos os méritos poéticos de Murillo.
          Contribuição grande ao nosso Modernismo foi sustentar, com outros poetas, a nota espiritual e a disciplina do verso, num momento de ruptura e destruição.
          Por isto será lembrado.
          Além desse fato histórico, temos de considerar sua contribuição para o acervo lírico da língua.
          O grande papel da Poesia é alargar e aprofundar a sensibilidade, fundir o pensar e o sentir, nesta nossa tarefa multimilenária de unificar o eu e unificar a humanidade.
           Murillo Araujo soube cultivar um torrão deste sesmo.
           Por isso é e será amado de todos os que amem a Poesia.


NOTAS

1. Jorge Amado, "Vida Iluminada de Poesia", in : Poemas Completos de Murillo Araujo (PCMA), vol. I, p. 5. Pongetti, Rio de Janeiro, 1960 (3 vols.).
2. Augusto Frederico Schmidt, citação in : PCMA I, 297.
3. Chamo poema polimétrico livre ou moderno aquele em que o poeta se permite a inclusão de versos transbordantes das medidas tradicionais ou heterodoxamente acentuados; ou a combinação de metros tradicionalmente havidos por incompatíveis.
4. Manuel Bandeira, Poesia Completa e Prosa , Aguilar, Rio de Janeiro, 1977.
5. PCMA II, 89.
Para a vírgula no fim do 12.º verso adotou-se a lição de Meus Poemas Diletos (MPD), p. 208 – Edições de Ouro, Rio de Janeiro, 1967.
Janeiro, 1967.
6. PCMA I, 21; MPD , 55.
7. PCMA II, 177.
8. PCMA III, 87.
9. Murillo Araujo, A Arte do Poeta , p. 102. Livraria São José, Rio de Janeiro, 1956 (2.ª ed.).
10. Ibidem , p. 76.
11. Alceu Amoroso Lima, "Limiar”, in : MPD, passim (páginas não numeradas).
12. PCMA II, 73; III, 189 e 197, respectivamente.
13. Manuel Bandeira, op. cit. , p. 623 ("Apresentação da Poesia Brasileira").
14. Adonias Filho, “Os Poemas de Murillo Araujo”, in : PCMA II, 7.
15. Marques Rebelo, “Meu Encontro com o Poeta”, in : PCMA III, 8.
16. Péricles Eugênio da Silva Ramos, “O Modernismo na Poesia", in : A Literatura no Brasil (dir. de Afrânio Coutinho), vol. 5; p. 110 – Editorial Sul Americana
S.A., Rio de Janeiro, 1970 (2.ª ed.).
17. PCMA II, 128, 136 e 158.
18. PCMA II, 232.
19. PCMA III, 134 e 172.
20. Vírgula no final do verso apenas em MPD, 223.
21. Idem.
22. A notar, desde os títulos (quase todos), a lumínica obsessão do poeta.
23. PCMA III, 93. Não tem ponto final, nesta edição como em MPD (p. 279).

Anderson Braga Horta

Do livro Criadores de Mantras - ensaios e conferências, Thesaurus Editora, DF, 2007

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