Baudelaire, Byron e Lúcio Cardoso — a flânerie e o dandismo do vampiro

Fernando Monteiro de Barros

É comum que as narrativas contemporâneas sejam construídas em torno de um mundo sem centro fixo ou definido, sofrendo os personagens com a crise da verdade que pega de chofre o sujeito urbano do século XX, atirado em um mundo onde a mobilidade social acarretada pela nova ordem burguesa e capitalista, e a incessante negociação do lugar da verdade e das identidades, ocasionada pela hegemonia do pensamento crítico, fazem com que qualquer pretensão a uma certeza monolítica, seja de que ordem for, se esboroe. “As sociedades modernas, são, por definição, sociedades de mudança constante, rápida e permanente” (HALL, 2001 : 14), não tendo “nenhum centro, nenhum princípio articulador ou organizador único”, e, portanto, não se desenvolvendo “de acordo com o desdobramento de uma única causa ou lei ” (Idem : 16).

A perda da verdade absoluta e do centro fixo, no contexto ocidental urbano dos séculos XIX e XX tem apresentado, como um de seus corolários, a errância como condição inescapável. Charles Baudelaire (1821-1867) é considerado, pelo filósofo Walter Benjamin, o primeiro poeta a refletir em sua obra a crise e os impasses da modernidade capitalista e industrial. O contexto em que viveu Baudelaire, a Paris do Segundo Império, ‘capital do século XIX', evidencia o surgimento de uma experiência urbana nova para o homem ocidental: a vida na grande cidade, a metrópole-labirinto, onde o sujeito poderia se perder, naufragado na multidão, e onde todos os crimes poderiam ser cometidos, já que seria “impossível manter boa conduta numa população densamente massificada onde cada um é desconhecido de todos os demais e não precisa enrubescer diante de ninguém” (apud BENJAMIN, 1989 : 38). A “Paris de Haussmann”, com o seu “crescimento, a sua expansão, o seu ingresso na modernidade e no mundo capitalista” (SZKLO, 1995 : 25), trazendo a reboque “o luxo, a elegância e a frivolidade” (Idem : 33), transformando os bulevares em interiores com suas galerias (BENJAMIN, 1989 : 35) onde cintilam as vitrines nas quais são expostas as mercadorias, fetichizadas, traz à cena o flâneur , aquele que vaga prazerosamente e sem rumo definido pelo novo e fascinante espaço urbano, realçado pela iluminação a gás. O flâneur é o “homem das multidões” (BENJAMIN, 1989 : 45), seduzido tanto pelas galerias como pelas lojas: “se, no começo, as ruas se transformavam para ele em interiores, agora são esses interiores que se transformam em ruas, e, através do labirinto das mercadorias, ele vagueia como outrora através do labirinto urbano” (Ibidem). Contrariando a ética do trabalho do então capitalismo de produção, o flâneur recusa-se a ser um mero corpo servil. “Extremamente curioso, sempre em busca de emoções baratas” (Idem : 51), ele brinda ao ócio nas sensações fugazes proporcionadas pelo labirinto da cidade grande, que o deixa inebriado: “uma embriaguez acomete aquele que longamente vagou sem rumo pelas ruas” (Idem : 186).

Entregar-se à flânerie é entregar-se à errância, à deriva. Se em Baudelaire tal atividade avulta como um exercício de transgressão ao status quo utilitarista vigente, no século XX, tanto na primeira metade, moderna, como na segunda, pós-moderna, a flânerie se torna uma condição compulsória inescapável para o sujeito urbano, descentrado e totalmente à deriva, não possuindo um centro fixo absoluto para tomar por “verdade” cabal.

O sentimento de desgosto em relação à face meramente capitalista da modernidade traduz-se em Baudelaire pelo tédio melancólico, spleen (BENJAMIN, 1989 : 103), desdobramento do mal-do-século romântico e precursor da nevrose do Decadentismo do final do século XIX. “ Flânerie é a imagem-chave do universo baudelairiano, dominado pelo olhar e pela teatralidade” (SZKLO, 1995 : 39). Em Baudelaire percebe-se um desgosto profundo por tudo que compareça sob a rubrica do natural . Para ele, “o cúmulo da arte já não é a idealização da natureza e, portanto, a imitação de alguma essência, como pensa o academicismo: a arte deve ser artificial, porque supera e nega a natureza” (LACOSTE, 1986 : 58). A mulher, “que é um ser natural demais” (Ibidem), só é valorizada para Baudelaire sob três hipóteses: maquilada , fatal ou lésbica , contrariando as leis da natureza nas três modalidades, em afronta ao modelo de mulher consagrado pelo etos burguês, o de esposa exemplar e mãe dedicada. A mulher “deve parecer mágica e sobrenatural, deve transformar-se em ídolo e colher de todas as artes os meios de elevar-se acima da natureza” (Ibidem). O esteticismo de Baudelaire “busca a verdade da arte na mentira surreal e no artificial” (Ibidem).

Algumas décadas antes de Baudelaire, na Inglaterra durante a vigência do Romantismo, a figura espetacular e escandalosa de George Gordon, Lord Byron (1788-1824), poeta e aristocrata, assunto de um capítulo inteiro do estudo de Mario Praz sobre a “agonia romântica”, compunha o arquétipo do “homem fatal”, cuja sedução decretava a destruição das mulheres por ele seduzidas. “Byron experimenta a euforia que é sua forma particular de volúpia: a felicidade no crime” (PRAZ, 1996 : 86). Amar e destruir “será a divisa dos heróis fatais da literatura romântica. Eles disseminam em volta a maldição que pesa sobre seus destinos, arrastam como um vendaval quem tem a desgraça de topar com eles” (Idem : 87). Belos e fascinantes, tais heróis românticos são irresistíveis para suas vítimas.

O desdobramento inevitável desse arquétipo foi o paradigma do vampiro sedutor. Se os primeiros comparecimentos literários do tema do vampirismo eram poemas de vampiras dissimuladas que viviam seu desejo enquanto clausura e atitude de ave de rapina, como “A noiva de Corinto” de Goethe (1797) e “Christabel”, de Samuel Taylor Coleridge, escrito entre 1797 e 1800, a primeira ocorrência do vampirismo literário em prosa foi em um conto inacabado de Byron, “ Fragment of a novel ”, de 1816, retomado, concluído e publicado por seu companheiro de viagem, o médico John Polidori, em 1819, sob o título “ The Vampyre ”, que apresenta vampiros masculinos sedutores, mundanos, e que livremente viajam pelo continente europeu e circulam nos salões da aristocracia londrina. Enquanto os vampiros e vampiras enclausurados dos demais textos literários muitas vezes apresentam características físicas repulsivas, como pele gelada e palidez cadavérica (RYAN, 1988 : xiii), Byron e Polidori estabelecem o arquétipo do “vampiro aristocrata” (Idem : xiv), elegantemente pálido e imberbe, com voz sedutora, lábios que passam a impressão de enfado e inquestionável carisma sexual (FRAYLING, 1992 : 6).

A imagem pública de Byron era uma calculada pose que ele admitia ter copiado dos vilões góticos de Ann Radcliffe (Ibidem). “Byron criou o fascinante jovem sexy de energia impetuosa e desafiadora, o novo , incorporado numa persona sexual carismática. Daí Byron sentir a aurora da era da velocidade. Juventude é rapidez em forma emocionalmente transitória ” (PAGLIA, 1992 : 332). A “publicidade e a moda” transformaram Byron em “herói sexual da alta sociedade européia” (Idem : 323), pois Byron “tinha puro carisma” (Idem : 334). No Brasil, os poetas românticos que mais acentuadamente receberam a influência byroniana são os chamados poetas adolescentes, como Álvares de Azevedo. Teatralidade e cosmopolitismo são as marcas contundentes do poeta inglês que parecem prenunciar o surgimento da cultura urbana da era moderna.

Como não poderia deixar de ser, o vampiro byroniano é um vampiro flâneur . Em “Fragment of a novel ” ele é Agustus Darvell, “homem de considerável fortuna e família antiqüíssima” (BYRON, 1988 : 2), educado em “escolas e universidades”, que já havia “viajado extensivamente” (Idem : 3). O jovem narrador do conto inacabado elege Darvell como seu companheiro de viagem, fascinado por sua figura enigmática de homem mais velho e mais experiente, pois Darvell é “profundamente iniciado nas coisas do mundo” e se apresenta como um “ser bastante invulgar” (Idem : 2). “Algumas circunstâncias peculiares em sua vida privada o haviam tornado para mim um objeto de atenção, de interesse e mesmo de estima”, a qual “nem a reserva de seus modos, nem indicações ocasionais de inquietude às vezes quase beirando o descaso, poderia se extinguir” (Ibidem). O narrador havia “tentado obter sua amizade, que parecia inalcançável” (Ibidem); suas “investidas eram recebidas com bastante frieza” (Idem : 3), mas sendo “jovem, e não facilmente desencorajado” conseguira afinal gozar da “intimidade, ou amizade” de Darvell (Ibidem). Era “desejo secreto” do narrador que Darvell o acompanhasse em sua viajem pelo continente europeu e sua resposta afirmativa lhe proporcionou “todo o prazer da surpresa” (Ibidem).

Após viajarem por vários países do sul da Europa, a atenção dos viajantes se “inclinou em direção ao Oriente” (Ibidem). Darvell, entretanto, começa a apresentar sinais de fadiga e se torna pouco a pouco cada vez mais abatido fisicamente. Chegando à Turquia, passam pelas ruínas do templo de Diana em Éfeso até chegarem a um cemitério turco, onde Darvell confessa a seu companheiro de viagem já ter estado anteriormente (Idem : 4), dizendo: “isto é o fim de minha viagem e de minha vida; vim aqui para morrer” (Idem : 5), ressaltando, porém, que tinha “um pedido a fazer”, ou melhor, “um comando”: o de que o narrador “ocultasse [sua] morte de todos os seres humanos” (Ibidem). Darvell pede a seu companheiro de viagem que preste um juramento solene de que irá respeitar sua vontade. Pede-lhe também que no nono dia do mês ele jogue seu anel nas fontes salgadas que desembocam na baía de Elêusis, e que no dia seguinte fosse às ruínas do templo de Ceres, e esperasse por uma hora. Nesse momento surge uma cegonha trazendo uma serpente no bico que, após voar em círculos, pousa em um determinado ponto do cemitério, onde Darvell pede para ser enterrado naquela mesma noite. No cair do crepúsculo Darvell subitamente morre e seu companheiro se encarrega dos procedimentos de seu enterro imediato, visto que o corpo de Darvell “estava rapidamente se deteriorando” (Idem : 6). A narrativa, inacabada, se encerra com a seguinte frase do narrador: “Em meio ao espanto e à tristeza, minhas lágrimas estavam secas” (Ibidem).

Enigmática, principalmente por ser inconclusa, a narrativa vampírica de Byron nos deixa entrever o vampiro como pertencente ao arquétipo do homem fatal, mundano, itinerante, mas também ligado às potências ctonianas da natureza pagã, vinculando o mito às divindades greco-romanas, como já fizera Goethe, e também ao orientalismo.

O conto de John Polidori, que muitos atribuíram erroneamente a Byron, tendo Goethe inclusive afirmado ser esta a melhor produção literária do poeta inglês, é bastante parecido com o texto de Byron, parecendo inclusive ser um pastiche do mesmo. Os dois contos na verdade parecem ter surgido na célebre noite em que Byron, Polidori, Shelley e sua esposa Mary estavam hospedados às margens de um lago na Suíça e resolveram, para passar o tempo, escrever cada qual uma história de terror, resultando no célebre romance Frankenstein (RYAN : 1988, 1).

Em “ The vampyre ”, o vampiro aristocrata Lord Ruthven, decalcado do modelo byroniano, é uma figura da moda na alta sociedade londrina (FRAYLING, 1992 : 40), cujas “peculiaridades faziam com que fosse convidado para todas as festas” (POLIDORI, 1988 : 7). Aristocrata enfadado, Ruthven “olhava para a alegria em torno dele como se dela não pudesse participar” (Ibidem). Apesar da palidez de sua face, era belo e possuía a reputação de, com sua lábia, tudo conseguir (Ibidem).

Chega a Londres um rico jovem chamado Aubrey, para quem “os sonhos dos poetas eram as realidades da vida” (Idem : 8). Insatisfeito por não encontrar correspondência na vida real para sua visão poetizada da existência, pensa em abandonar tudo até encontrar Lord Ruthven em seu caminho, que Aubrey logo passa a considerar como se ele fosse “um herói de romance, determinado a observar os frutos de sua fantasia ao invés da pessoa diante de si” (Ibidem). Assim como o jovem narrador em relação a Darvell no conto de Byron, Aubrey cumula Ruthven de atenções até se fazer notar. Ao ardilosamente descobrir que Ruthven está prestes a viajar, Aubrey insiste com seus tutores que o deixem fazer uma viagem pelo continente europeu e, ao mencionar seus planos a Ruthven, fica surpreso em receber dele a proposta de irem juntos, “lisonjeado por tal sinal de estima daquele que aparentemente não possuía nada em comum com os demais homens” (Idem : 9).

O conto de Polidori, praticamente decalcado do de Byron, apresenta um vampiro viajante, flâneur , completamente livre da clausura, exercendo seu fascínio e seu desejo por quem bem lhe apraz. Segundo Nina Auerbach, a maior sedução dos vampiros byronianos, Darvell e Ruthven, é a sua oferta de amizade e intimidade a jovens rapazes inexperientes e sonhadores, como o narrador do fragmento inacabado de Byron e Aubrey (AUERBACH, 1995 : 14). Em ambos os textos haveria a presença do que Eve Sedgwick denomina por “Gótico paranóico”: um personagem masculino se sentindo ao mesmo tempo ameaçado e atraído por outro personagem masculino (Ibidem). Os vampiros Darvell e Ruthven são homens fatais, trazendo para o mito os componentes do delito amoroso e da alegria no crime .

Apesar de não explicitarem práticas sexuais em suas páginas, ambos os textos são perpassados por uma tonalidade homoerótica indiscutível. Em comum, os vampiros byronianos, mais maduros, são mais objeto de fascínio para os rapazes mais novos e inexperientes do que propriamente perpetradores de alguma investida desejante.

A atração homoerótica exercida pelos vampiros de Byron e Polidori sobre rapazes sonhadores e inocentes guarda semelhanças com algumas narrativas do romancista mineiro Lúcio Cardoso (1912-1968). Em Inácio (1944), novela urbana de Lúcio, temos no personagem título a encarnação do homem fatal, acrescido de marcas baudelairianas e dandistas. Aqui também há traços de “Gótico paranóico”. O texto é narrado por Rogério Palma, filho de Inácio, que começa a narrativa convalescendo de uma longa doença, aprisionado no quarto da pensão da Lapa em que vive. Sentindo-se melhor, sai em busca de seu pai, figura mitológica da baixa boemia carioca, que sobre ele exerce um fascínio indiscutível.

Os personagens aqui também se entregam à flânerie . A narrativa se constrói de forma febril, vertiginosa, alucinada. Inácio é um vampiro flâneur , um dand y cruel: “entre tão vis criaturas, como Inácio parecia florescer, como se mostrava satisfeito!” ( I , p. 73). Seu maior desafeto, Lucas Trindade, confirma tal premissa, ao dizer a Rogério: “nem sabe você de que poderes é dotado esse demônio! [...] E como zomba de mim, como se ri, como bebe e vive satisfeito, esse monstro! E sempre o vi assim, com essa fisionomia que jamais envelhece, com o mesmo olhar e a mesma cara de boneca!” ( I , p. 74). Suas maneiras são “finas e aristocráticas” ( I , p. 113), suas roupas eram aquelas “que um homem decente jamais usaria” ( I , p. 83), porém “o aspecto de boneca que Inácio apresentava, sua pele semelhante à louça experimentada, era de fogo que ele o extraía” ( I , p. 82).

O jovem e visionário Rogério flerta com a subversão da ordem e Inácio para ele avulta como uma espécie de Dioniso, encarnando a transgressão e a desordem ( I , p. 92). De qualquer forma, Rogério parece sentir-se em relação a Inácio da mesma forma que os rapazes dos textos de Byron e Polidori por seus respectivos vampiros:

Não sabia dizer se aquele homem me atraía ou me causava repulsa. O certo é que suas possibilidades causavam-me uma singular fascinação. [...] ...às vezes surpreendia-o fitando-me... [...] E, realmente, quase sempre eu me extasiava, chegava a achá-lo belo, com seu rosto de louça e o seu indefectível terno xadrez. [...] Inácio sondava-me. Feliz, eu cedia às suas perguntas, entregando-me com a confiança de quem se depara com o primeiro amigo. (I, p. 90)

Uma só idéia me habitava naquele instante: encontrar Inácio, encontrá-lo seja a que preço fosse, atirar-me nos seus braços, propor-lhe que nunca mais nos separássemos. (I, p. 106)

Fitei-o com uma ternura que revelava de modo inequívoco o que se passava na minha alma. [...] Estendi a mão trêmula e pousei-a no braço do meu companheiro. Era a primeira vez que ousava um gesto daquela intimidade. ( I , p. 107)

Assim como nas narrativas byronianas, há aqui também o tema da viagem compartilhada:

Rogério – disse Inácio, afetuosamente –, quer vir comigo, quer vir para sempre?

É tudo o que mais almejo nesta vida – respondi.

Então ele se inclinou sobre mim, inclinou-se tanto que seus cabelos roçaram os meus, e disse, num tom tão ardente e sufocado que sua voz mais parecia uma brisa morna roçando pelo meu ouvido:

Tenho passagens compradas para São Paulo. Partiremos esta noite...

Durante um minuto contemplei-o, fascinado. O calor que se desprendia dele vinha até mim e contaminava-me como uma vaga escarlate. (I, p. 108-109)

Este enlevo mistura-se à constatação da ameaça e da tirania. Inácio quer que seu filho Rogério mate seu velho desafeto, Lucas Trindade: “voltando a vista para Inácio, vi que ele me fitava de modo tão ardente e imperioso que não hesitei em empurrar a porta e penetrar no quarto” (I, p. 110), afirma o narrador Rogério, que constata: “devo repetir aqui que agia numa espécie de sonambulismo e que a presença de Inácio, como sempre, atuava sobre mim como se eu tivesse bebido uma droga” (Ibidem). Tal qual escravo de Drácula, Rogério é vampirizado por Inácio, que tenta transformar-lhe em uma espécie de zumbi que obedecesse a seus comandos: Inácio ordena que Rogério atire em Lucas Trindade. Rogério acaba por desencantar-se com Inácio, e, já no trem, quando Inácio chega acompanhado de algumas mulheres e lhe oferece um ramo de cravos vermelhos, Rogério, olhando-o “com todo o ódio de que era capaz” (I, p. 116), atira o ramo de cravos no chão e definitivamente enlouquece, num destino bastante semelhante ao de Aubrey.

Em O enfeitiçado, de 1954, a trama de Inácio é retomada agora na voz do próprio enquanto narrador, envelhecido, cuja última ambição está em reencontrar o filho perdido, Rogério, num jogo quiásmico de espelhos diegéticos que se interligam uroboricamente. (O uroboros é a cobra mitológica que engole a própria cauda, num movimento circular perpétuo.) Enquanto o filho, jovem narrador da novela de 1944, tecia uma escrita febril, veloz e vertiginosa, o pai, agora nesta narrativa de 1954, constrói um discurso reflexivo e bem menos alucinado, mas nem por isso menos atormentado.

O Inácio narrador de O enfeitiçado confirma seu dandismo vislumbrado na narrativa anterior: segundo suas próprias palavras, a história de sua vida é composta de “cinco ou seis vidros de loções ou perfumes, pomadas, escovas, tinturas para os cabelos, esmalte para as unhas” (OE, p. 278). Continua dizendo que, diante do espelho, “eu recompunha o Inácio exterior, o Inácio completo, acabado e sorridente, que eu mesmo servia aos outros, a mim mesmo, com obstinação e apuro” (Ibidem).

Walter Benjamin, em seu já mencionado estudo sobre a obra de Baudelaire, aponta como figura-chave de seu universo poético, além do flâneur e da lésbica, o dandy . O elogio do falso, do mentiroso e do teatral vem a reboque, para Baudelaire, de sua concepção de dandismo: “o dândi deve procurar ser ininterruptamente sublime – mesmo quando dorme deve viver como se estivesse diante de um espelho” (BAUDELAIRE, 1995 : 526). “Como atitude filosófica, o dandismo constitui-se numa forma de rebeldia, com repertório próprio de valores em oposição ao sistema moral da consciência burguesa” (MUCCI, 1994 : 52). Ao “redigir a ostentação de sua diferença”, o dandy decadentista, herdeiro de Baudelaire, “contrariava o projeto massificador da sociedade, no mesmo trunfo que repudiava o princípio de valorização do trabalho e do lucrativo, ao brindar o ócio e o prazer no cortejo do virtual e do inútil” (BOUÇAS, 1995 : 11). A atenção dedicada pelo dandy “aos trajes, aos tecidos, aos perfumes” decide-se como “manifestação de discursos alternativos contra a voz autorizada” (Ibidem). Em seu gesto desafiador de aspirar à originalidade absoluta, o dandy opta por distinguir-se da massa burguesa através de sua opção explícita pela transgressão à moral vigente e pela sua indumentária ornamental e excêntrica. Sua afetação e teatralidade traduzem o culto estetizado que faz de si próprio. O dandismo nos escritores do final do século XIX pressupunha um entrelaçamento entre a vida e a arte, que podemos conferir em nomes como Oscar Wilde, Gabriele D'Annunzio, Mário de Sá-Carneiro e João do Rio.

O dandismo cruel de Inácio assume contornos vampíricos quando vislumbra na jovem Adélia a possibilidade de sugar de volta a juventude perdida: “ela é que talvez me dê um pouco de sua chama, desse calor que eu necessito para remoçar” (OE, p. 262), já que “a vida, com o tempo, esfria e amortece nas veias – e é preciso calor jovem, temperatura diferente, para nos aquecer e nos atirar de novo ao turbilhão fecundo” (Ibidem); “Realmente, sentia-me tão moço como se um pouco da vivacidade de Adélia tivesse passado para o meu sangue” (OE, p. 270).

A confirmação de seu vampirismo também na modalidade de ave de rapina se confirma quando consegue ardilosamente embebedar a jovem, levando-a inconsciente para o seu quarto. Sabendo-se nesta altura de sua vida “um velho, um ridículo velho” (OE, p. 326), Inácio não mais possui a beleza apolínea, passaporte para o amor nas narrativas ocidentais, e, assim, ataca furtivamente seu objeto de desejo no momento propício, tal como o vampiro que beija suas vítimas quando as encontra adormecidas:

Eu a levava apertada contra o meu peito, como uma ave de rapina segura a presa conquistada. Tudo era meu, ela, a noite, o odioso intento que já fazia arder todo o meu ser. [...] Ganhei o meu quarto e cuidadosamente depositei Adélia na cama. [...] E só aquele corpo palpitava, só ele existia. Aproximei-me de novo, deixei-me escorregar a seu lado. [...] Se me inclinasse um pouco, sentiria seu hálito roçando a minha face; e, se colocasse o ouvido ao seu peito, ouviria as batidas do seu coração. [...] Devagar, como quem executa um ato sagrado, comecei a despi-la. [...] Agora estava nua e palpitava – um lírio, um longo e fino lírio estendido sobre a cama. [...] De súbito, não sei que vertigem se apossou de mim... [...] Inclinei-me sobre Adélia adormecida e, tomando-a nos braços, colei à sua boca meus lábios ávidos. Aquele beijo não tinha gosto de coisa alguma, mas eu sentia palpitar junto à minha carne aquela vida cheia de calor e de intensidade, o que me dava momentaneamente uma sensação idêntica à da embriaguez. E confesso que não tive nenhum pudor, nenhum remorso em profanar aquele corpo de criança. (OE , p. 322-325)

Mais uma vez nos lembramos de Baudelaire, quando diz: “a suprema volúpia do amor está em saber que se faz o mal” (BAUDELAIRE, 1995 : 505). Seu poema “A Alma do Outro Mundo”, sobre vampirismo, dialoga intertextualmente com a passagem cardosiana acima citada:

Como os anjos do ruivo olhar,
À tua alcova hei de voltar
E junto a ti, silente vulto,
Deslizarei na sombra oculto;
Dar-te-ei na pele escura e nua
Beijos mais frios do que a lua
E qual serpente, em náusea fossa
Te afagarei o quanto possa.
Ao despontar o dia incerto,
O meu lugar verás deserto,
E em tudo o frio irá se pôr.
Como os demais pela virtude,
Em tua vida e juventude
Quero reinar pelo pavor.
(Idem : 155)

O personagem Inácio, assim, avulta nas narrativas de Lúcio Cardoso como um vampiro urbano, flâneur e dandy, apresentando ressonâncias tanto de Byron quanto de Baudelaire.

Para coroar esta galeria de vampiros errantes, não poderíamos terminar este ensaio sem deixarmos de mencionar a flânerie do mais famoso de todos, o próprio conde Drácula de Bram Stoker (1897), itinerante que, ao abandonar a clausura de seu castelo remoto e viajar até Londres, conjuga-se ao trânsito da experiência moderna de trocar a estabilidade da tradição rural e medieva pela deriva inevitável ao cosmopolitismo mundano.


_______
Bibliografia
AUERBACH, Nina. Our vampires, ourselves . Chicago : The University of Chicago Press, 1995.
BAUDELAIRE, Charles. Poesia e prosa. Edição organizada por Ivo Barroso. Trad. Ivan Junqueira et alii. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo . Trad. José Carlos Martins Barbosa et alii. São Paulo: Brasiliense, 1989.
BOUÇAS, Luiz Edmundo. “Um dandy decadentista e a estufa do novo”. In: RIO, João do. A mulher e os espelhos Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Dep.
Geral de Doc. e Inf. Cultural, Divisão de Editoração, 1995.
BYRON, George Gordon, Lord . “Fragment of a novel”. In: RYAN, Alan (editor). The Penguin book of vampire stories. New York: Penguin, 1988.
CARDOSO, Lúcio. Três histórias da cidade: Inácio, O anfiteatro e O enfeitiçado . 2.ed. Rio de Janeiro: Bloch, 1969.
FRAYLING, Christopher . Vampyres: Lord Byron to Count Dracula . London: Faber and Faber, 1992.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade . Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro. 5.ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
LACOSTE, Jean. A filosofia da arte . Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986.
MUCCI, Latuf Isaías. Ruína e simulacro decadentista: uma leitura de Il Piacere, de D'Annunzio. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1994.PAGLIA, Camille.
Personas sexuais: arte e decadência de Nefertite a Emily Dickinson
. Trad. Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
POLIDORI, John. “The Vampyre”. In: RYAN, Alan (editor). The Penguin book of vampire stories. New York: Penguin, 1988.
PRAZ, Mario. A carne, a morte e o diabo na literatura romântica . Trad. Philadelpho Menezes. Campinas: Editora da UNICAMP, 1996.
RYAN, Alan. “Introduction”. In: ___ (editor). The Penguin book of vampire stories . New York: Penguin, 1988.
SZKLO, Gilda Salem. As flores do mal nos jardins de Itabira; Baudelaire e Drummond . Rio de Janeiro: Agir, 1995.

Fonte: www.filologia.org.br/soletras/5e6/04.pdf

Página atualizada em 14 de setembro de 2011

« Voltar