Da coragem estoica ao puro amor: uma indagação do achado

Claudia Pastore
Doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, pela Universidade de São Paulo

Afinal, pelo amor se busca a tranquilidade da alma ou pelo amor se tem a felicidade?
E o que é a felicidade sem a tranquilidade da alma e vice versa?
De Sêneca (4 a. C. – 65 d. C.), eu saltaria a Victor Hugo (séc. XVIII francês), falando do desejo: “desejo que você tenha a quem amar e quando estiver bem cansado, ainda exista amor pra recomeçar...” (1) O eterno recomeço da incessante procura da felicidade, pois, se e quando a encontrarmos, já não seremos mais os hermafroditas divididos, disformes e inacabados que somos, seremos o Uno, que só a Ele se atribui.
Em tempos pós-modernos, onde o homem atingiu o mais alto grau de distanciamento de si mesmo, ao mesmo tempo em que difundido em milhões de partículas nessa ubiquidade tão em desacordo com a natureza, pois que a natureza é a harmonia e o equilíbrio, Eduardo Salles Pimenta nos apresenta a alma, ou seja, nos fala da ataraxia; a tranquilidade da alma.
E esta fala melodiosa, orquestrada com os mais interessantes acordes intelectuais, surge num momento caótico, onde a paz é tão necessária.
A tese que o autor defende com maestria resume-se na questão: É possível ter o equilíbrio energético violando os valores morais? E, equilíbrio energético, para Eduardo Pimenta, é a fusão entre a felicidade e a ataraxia, ou seja, a tranquilidade da alma.
Mas tal constatação tropeça nos percalços da vida real, da vida urbana. Para termos a tão sonhada tranquilidade interior, necessitamos estarmos bem fisicamente e, é este o apelo feito na obra, não mais pelo admirador da Filosofia Antiga, mas pelo advogado, conhecedor das leis que regem e protegem nossa sociedade. Apelo este feito ao Estado, que deveria suprir as necessidades de sobrevivência dignas de todas as pessoas, de maneira igualitária, mas, como sabemos, isto não acontece.
Eduardo Pimenta vai buscar no estoicismo de Sêneca respostas e sugestões para o caminho que, nesta obra, escolheu percorrer. Vislumbra na natureza, reais possibilidades de espelhamento para que possamos atingir tal grau de compleição interior.
Se observarmos bem, a natureza é perfeita; basta prestarmos mais atenção num dia de sol, nas nuances do verde dos gramados, na disposição das árvores, seus diversos tipos e formatos como também no convívio pacífico e harmonioso entre os animais... O homem mata por matar, e os animais?
O autor coloca em evidência os valores morais: “Pode-se constatar que os valores morais de um homem demonstram o seu modo de ser e o estado de sua alma.” (2)
Em consonância com seu meio e com seu interior, num movimento harmônico entre o micro e o macrocosmos, é que o homem mergulha nesse estado ataráxico consigo mesmo. E isto exclui qualquer tentativa de enxergarmos a obra enquanto utópica ou fora da realidade.
O que o autor nos sugere é a aplicabilidade filosófica na realidade vigente, no pós-moderno.
Se o pós-moderno é a fragmentação do ser, Eduardo Pimenta percorre um caminho corajosamente demonstrando quase todas as razões para colarmos parte por parte esses cacos jogados ao chão.
(os cacos da vida quebrados de Drummond...).
Colocando em paralelo, não em oposição, o abstrato e o concreto, o transcendente e o imanente, é que o autor, através de seu fascínio pela alma, busca ferramentas expressivas para melhor lidar com indagações tão tênues, como as provindas da alma, da sua humana alma.
Da filosofia percorrida pelo autor, por caminhos pontuados pelos estoicos (espírito da conservação individual), pelos epicuristas (busca do prazer da alma; pelos cínicos (libertação do indivíduo), pelos céticos (preservação e suspensão de juízos) e pelos ecléticos (somatória de várias escolas filosóficas), eu sobreponho um afluente a mais, o da psicologia, no intuito de não só adotar, como também enfatizar a participação do racional junto ao emocional, como ferramentas ao encontro do estado ataráxico.

“Quando falamos em mudanças emocionais, é fundamental termos a noção de que qualquer alteração nas emoções desencadeia uma mudança correspondente no organismo (...) Mudar emocionalmente, portanto, é mais do que mudar o pensamento. É mudar o organismo, criando fisicamente novos caminhos, com novas sinapses, e treinar estes caminhos até que se tornem habituais. É um processo que exige paciência e perseverança, e entender que toda mudança comportamental e emocional também se dá no plano físico, onde nenhuma mudança acontece do dia para a noite, é, portanto, condição essencial para quem deseja aprimorar-se.” (3)

Tudo está interligado, argumento frágil o da globalização perante o da teoria quântica: ou seja, tudo se interpenetra e se torna interdependente, mente e matéria, o indivíduo que observa e o objeto sob análise.
Podemos notar, portanto, que, por mais que estejamos num momento onde o individualismo, a autossuficiência e, até mesmo, o egocentrismo reinam soberanos por nossas cabeças desenfreadas e complexas por tantas informações e a velocidade com que nos chegam a todo instante, somos pontos (melhor se fôssemos luminosos), nas interseções dessa grande rede que paira sobre nós.
Imaginemos a Terra envolvida, inteira, por uma rede; ou seja, a rede é uma, mas só porque interligadas estão as suas partes.
Tudo se relaciona e interdepende entre si. É por isso que o autor, mesmo buscando na Filosofia antiga, argumentos para desenvolver e demonstrar essa relação forma x conteúdo; acaba por traduzir nosso atual momento.
Somos então um produto do meio? E a alma, onde fica diante de tanta fragmentação?
Talvez a alma seja o ponto forte ainda escondido da ciência, que tenta se mostrar, mas que tem medo de ser descoberta... Pois que toda a busca científica cairia por terra se a víssemos cara a cara.

“os fatores mais desequilibradores do ser humano são a sensação interna de medo (inserindo a superstição – em grego deisidaimonia ) e o desejo, ou seja, a sensação de dever suprir uma necessidade externa, qualquer que seja ela. O medo causa uma excitação sem fôlego, e o desejo atormenta a alma.” (4)

A consciência da efemeridade das coisas, do mundo, do homem, enfim, da vida é que leva Eduardo Pimenta a defender a tese de que, além disso, pelo autocontrole e preservação dos valores morais, é que se pode chegar à tranquilidade da alma.
Difícil empreitada essa em meio ao frenesi do mundo tecnoglobalizado em que vivemos...
Mas o autor, com veemência na defesa de sua proposição, nos esclarece:

“Como nos autocontrolarmos e compreendermos a necessidade, para termos a sensação da ataraxia? Cremos que primeiro é elementar ser racional na análise dos fatos adjacentes ao obstáculo que impede a tranquilidade, portanto, é preciso ter raciocínio lógico. E com isso saber que as coisas não são para uma vida inteira, elas passam, mudam com a natureza, razão pela qual não se busca as coisas para a vida inteira no pensamento de que a vida inteira seja eterna, e sim enquanto puder permanecer com ela”. (5)

Ora, se vivemos em busca de evolução, perante a efemeridade de tudo, do físico e do metafísico, não seria duro demais infligirmo-nos a tarefa de total equilíbrio visando à tranquilidade da alma?
Nas entrelinhas de sua obra, nota-se um permeio da filosofia kardecista, onde o corpo, morada da alma, o representa e o reflete, guardião do espírito, o metafísico no físico, que veio ao mundo para evoluir.
Tarefa dificílima esta... Talvez não fosse tarefa para uma só vida, daí o pressuposto da reencarnação.
Então, quando o autor nos fala em manter o equilíbrio enquanto sentido da vida, podemos ter tal permanência como a justa evolução entre corpo e alma, entre material e abstrato, entre mente e espírito.
Vejamos Fernando Pessoa:

O myhto é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mhyto brilhante e mudo –
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.

Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos creou.

Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade.
E a fecundal-a decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre. (6)

O mito é a representação do inacessível, do sublime. Logo, Deus é uma figura mítica. Portanto eu o admiro e busco seus ensinamentos espelhando-me em sua perfeição, por ser Ele a apresentação do Uno, justamente a união entre matéria e espírito, matéria esta representada pela natureza.
Pois na esteira de Hegel; nada grandioso no mundo foi realizado sem paixão. Mas, não seria o estado da paixão um índice de desequilíbrio?
Aqui podemos tocar no ponto focal dos pressupostos do autor. Se conseguirmos manter o equilíbrio, na busca da tranquilidade da alma; onde o desejo elemento propulsor da criação? Não existem mudanças sem revolução e não existe o desejo de mudar sem paixão. Portanto, essa tranquilidade anímica, deve fazer parte da caminhada humana como coadjuvante, não como elemento primordial em nossas vidas, pois,

“PARA SER GRANDE, sê inteiro: nada
          Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
         No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
         Brilha, porque alta vive.” (7)

Muitas vezes, fechar as comportas dos descompassos da alma, agridem nossas mais belas criações...

Não defendo aqui a insanidade da alma na busca cega de seus desejos, mas a não sobreposição da razão à emoção; pois que uma não vive sem a outra, ou, por outro lado, ambas são permanentes no homem.
Conhecimento e razão, palavras-chave utilizadas pelo autor, colocadas em pontos estratégicos, como torres de combate, em meio aos tão frequentes antagonismos provindos do convívio, pacífico ou não, entre os postos ocupados, ora pela excitação, pelo desejo (não só o sexual), ora pelo estado de satisfação, de plenitude, de imperturbabilidade (não só da alma, como também dos sentidos).
A vida é movimento, afirma Eduardo Pimenta ao citar Alberto Schwegler (8) . Tudo está em evolução, portanto, não enxerguemos ataraxia enquanto fim, mas enquanto meio a uma vida mais feliz, cuja alma substitua os espaços ora ocupados por poeiras negras do medo e do desejo insano, por livres escolhas em cujo cerne se vislumbre a esperança, a possibilidade do sorriso, o lúmen da felicidade – mesmo que efêmera. Pois que a palavra é efêmera, que a vida é efêmera; sou cega de tanto vê-la e surda de tanto de ouvi-la. Existem coisas na vida, que sabemos, simplesmente porque sabemos, e que não precisam ser ditas a todo momento e, efemeridade, é uma delas.
É preciso amar as coisas, a vida e as pessoas como se não houvesse amanhã , citando Renato Russo (9). Pois, caso contrário; como tão majestosamente alta viveria a lua pessoana?
E o desejo, onde colocá-lo?
Nas palavras do autor: “cada coisa que desejamos é objeto de nosso desejo com vistas a algo mais – exceto a felicidade, o objetivo final da vida.” (10) (...) “Se tudo é energia, devemos buscar o equilíbrio energético, observando as necessidades elementares do corpo. Quando, então, como homem prudente, atento aos acontecimentos do presente e do futuro, poderemos ter a atenção e utilizá-la para perceber o puro amor (...) Eis porque os estoicos amam, para demonstrar a força e o benefício da correção moral. Assim preservam o estado de ataraxia.” (11)
E eu, aproximando poesia e filosofia; femininamente citaria Drummond:

“(...) ah PORQUEAMOU
        e se queimou
        todo por dentro por fora nos cantos nos ecos
        lúgubres de você mesm (o,a)
        irm (ã,o) retrato espéculo por que amou?
        se era para
        ou era por
        como se entretanto todavia
        toda via mas toda vida
        é indagação do achado e aguda espostejação
        da carne do conhecimento, ora veja
        permita cavalheir (o,a)
        amig (o,a) me releve
        este malestar
        cantarino escarninho piedoso
        sem querer consolar sem muita convicção
        o que é inconsolável de ofício
        a morte é esconsolável consolatrix consoadíssima
        a vida também
        tudo também
        mas o amor car (o,a) colega este não consola nunca de
        núncaras (12)

_______
Notas referenciais:

(1) Disponível em: < http://www.nosrevista.com.br/2009/12/28/desejo-um-poema-de-victor-hugo >. Acesso em 03/11/2012.
(2) Pimenta, E.S. Sobre a ataraxia. p. 38.
(3) Gaudêncio, Paulo. Superdicas para se tornar um verdadeiro líder. p. 104
(4) Pimenta, Eduardo Salles. Sobre a ataraxia. p. 48.
(5) Pimenta, Eduardo Salles. Sobre a ataraxia. p. 52
(6) Pessoa, Fernando. O Eu profundo e os outros Eu (seleção poética). p. 46
(7) Pessoa, Fernando. O Eu profundo e os outros Eus. p. 189.
(8) Pimenta, Eduardo Salles. Sobre a ataraxia. p. 133.
(9) Pais e filhos, canção de Renato Russo. Disponível em: http://letras.mus.br/renato-russo/75858/.
(10) Pimenta, Eduardo Salles. Sobre a ataraxia. p. 239.
(11) --------------------------- Sobre a ataraxia. p.p.243-244
(12) Andrade, Carlos Drummond. Antologia Poética. p.p. 180-181.

Referências bibliográficas:

ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia Poética . Rio de Janeiro: Record, 1990.
GAUDÊNCIO, Paulo. Superdicas para se tornar um verdadeiro líder . São Paulo: Saraiva, 2009.
HEGEL, Georg W. F. Fenomenologia do espírito . Tradução Paulo Meneses. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2011.
PESSOA, Fernando. E Eu profundo e os outros Eus: seleção poética . Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
PIMENTA, Eduardo Salles. Sobre a ataraxia: a tranquilidade da alma . São Paulo: Letras Jurídicas, 2007.
Internet :
O poema “Desejo”, de Victor Hugo. Disponível em: < http://www.nosrevista.com.br/2009/12/28/desejo-um-poema-de-victor-hugo >. Acesso em 03/11/2012.
A canção “Pais e filhos”, de Renato Russo. Disponível em http://letras.mus.br/renato-russo/75858/ . Acesso em 04/11/2012.

Página atualizada em 23 de novembro de 2012

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