Autobiografia

                               Nasci nesta terra pintada de verde e iluminada pelo mais generoso dos sóis. Passei a infância caçando e pescando, bebendo a água pura das fontes de todas as juventudes e correndo livre pelos campos de todos os sonhos. Tive muitos irmãos, repartíamos o nosso teto, o nosso alimento e as nossas tarefas domésticas. Éramos todos guerreiros, pintávamos o corpo de vermelho para enfrentar as feras selvagens e os inimigos desconhecidos. Éramos um povo saudável e alegre, dançávamos em torno da fogueira, cantávamos orações para acalmar o trovão e para ter caça farta na manhã seguinte. Amávamos os sinuosos caminhos da floresta, o grito ancestral do macaco, o canto terno dos pássaros e o suave barulho das ondas de um oceano de peixes, pérolas e surpresas...

                               Cheguei a esta terra pelo mar, pendurado no mastro mais alto de uma caravela chamada aventura. Enfrentei, juntamente com meus intrépidos companheiros, as piores tempestades e as mais entediantes calmarias durante dias vazios e noites aterradoras, povoados por abismos e monstros. Mas trouxe comigo dois poderosos instrumentos de conquista: a pólvora e a cruz. Com essa dupla proteção, desembarquei numa praia habitada por homens nus, ingênuos e primitivos, armados com as flechas da desconfiança. Logo percebi que não tinham alma, mas tinham desejos: ofereci-lhes colares de contas, espelhos e um deus em troca de ouro e madeira. Impus-lhes as minhas verdades, as minhas crenças e o conhecimento que trazia do meu continente distante – e que acabaram servindo de alicerce para a civilização deste novo mundo...

                               Vim parar nesta terra contra a minha vontade, com correntes nos pés e uma tristeza infinita no coração. Fui arrancado do meu chão, separado de minha família e jogado no porão sufocante de um navio. Me deram por companhia quatro damas do apocalipse: a fome, a sede, a doença e a morte. Sobrevivi à travessia para esfolar minhas mãos negras nas plantações de cana, mas a isso também resisti. Revoltei-me, fugi, virei Zumbi, escapei do açoite e busquei abrigo numa longa noite de sofrimentos, até que o sol da liberdade em raios fúlgidos brilhou no céu da pátria nesse instante...

                               Sou tudo isso. Sou índio, europeu e africano. Sou brasileiro e completo amanhã os meus primeiros 500 anos.

Nilson Souza
20/04/2000
Enviado por Eliane Malpighi

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