CIDADES BRASILEIRAS

Relato de viagem à Cidade de Cunha, SP

Depois de cinco anos vivendo juntos, minha esposa está, finalmente, se transformando na pessoa ideal que eu vislumbrei quando me casei. Está deixando de ser apenas mãe para ser, também, esposa. Isto porque, para minha alegria, os rebentos estão botando as manguinhas de fora e exigindo ter vida própria. Não sem dor no coração, ela percebeu que deve ceder aos anseios dos filhos e abrir mão de suas expectativas e tentativas de controle…

Foi aproveitando essa brecha, ainda um tanto quanto estreita, mas muito clara para mim, que eu propus uma viagem relâmpago, uma reedição da nossa lua-de-mel. Para minha surpresa, ela aceitou sem titubear, um convite para um fim de semana na estância climática de Cunha SP, numa pousada que me seduziu pelo nome, muito sugestivo, de Pousada da Mata. Fiz a reserva de um chalé de luxo, coisa que jamais havia feito antes na vida, para a eventualidade dela mudar de idéia; assim eu teria um trunfo na manga para contra argumentar! Não foi preciso, ela se comportou muito bem e programou para que nada fosse um impedimento do sucesso de nossa viagem.

Sexta-feira, no meio da tarde, nós partimos para a viagem de duas horas de São José dos Campos até Cunha, encravada num “mar de morros“ entre as  Serras, do Mar, da Bocaina e do Quebra-Cangalha. Durante o trajeto fomos conversando e descobri que minha esposa teve uma forte ligação com a cidade de Cunha, onde, por diversas vezes, passou as férias quando criança. A região de Cunha era o destino preferido do meu sogro e sua família.

Chegamos quase ao anoitecer e eu quis dar uma volta para me familiarizar com a cidade antes de nos dirigirmos à pousada, que se localiza na zona rural, distante uns 8 km do centro de Cunha. Um belo portal enfeita a entrada da cidade e dá as boas vindas aos viajantes que chegam do Vale do Paraíba.

Mas alguns metros depois da entrada, a coisa muda e a impressão é de que o portal é apenas fachada. Nem sinal das construções históricas anunciadas nos sites que propagandeiam a cidade, apenas casas comuns e um paisagismo urbano muito pobre e descuidado. Desanimados e temendo a chegada da noite, resolvemos fazer meia volta e tomar o rumo da pousada, para chegarmos lá ainda com luz.

Tomamos um caminho diferente para deixar a cidade e foi possível ver algo que me brochou de vez: uma casa recém construída, praticamente dentro do um riacho que corta cidade.
A visão deste descaso ambiental me fez considerar: será que eu havia feito um boa escolha para o nosso idílico fim de semana? Pensamentos negativos rondaram minha cabeça nessa hora… Minha esposa não disse nada, ela tem meditado muito ultimamente e agora ela se observa bastante antes de fazer um comentário negativo. Mas a expressão do rosto não negava, ela estava decepcionada com o que via.

A chegada na pousada melhorou um pouco nosso humor. O local é bem cuidado, cheio de árvores, nosso chalé tinha uma vista maravilhosa e a recepção de dona Joana nos fez sentir em casa.

Na hora de preencher a ficha de hóspedes, a pergunta tradicional: “Como foi que você descobriu a pousada?”. Eu não me lembrava e tive que refrescar a memória. Lembrei do marceneiro que fez os móveis em casa, ele é de Cunha e fez muita propaganda da qualidade de vida da cidade. Me contou que toda carne, queijo, frango e ovos ele traz de lá e congela, não come nada de açougue ou supermercado. Talvez eu tenha sido influenciado pelo que ele disse e acabei procurando uma pousada em Cunha. Ou ainda, pode ser que minha esposa já tivesse me contado de suas férias na região, não sei, não me lembro. Mas eu fiquei com uma pulga atrás da orelha. Por que eu tinha escolhido Cunha, dentre tantas cidades históricas do Vale do Paraíba? Escrevi na ficha que tinha escolhido por intuição, grafei apenas essas duas palavras. Dona Joana me olhou meio torto mas não disse nada…

Mais tarde, sob encomenda, já que não queríamos arriscar a comida da cidade, dona Joana nos preparou uma sopa de legumes que foi um conforto, foi como receber um abraço por dentro. Cansados da viagem, fomos dormir muito cedo.

Dia seguinte, um frio de lascar, pulamos logo cedo da cama e fizemos uma caminhada de uns 5km pelas redondezas, antes do delicioso café da manhã, preparado por dona Joana e sua filha Ana. Destaque para os bolos de milho e o de batata doce. O fogão de lenha aceso é um must, esquenta o ambiente e dá vida ao local.

De estomago forrado, saímos para o desconhecido. Já havíamos desistido de nossa intenção inicial, que era fazer alguma trilha no Parque da Serra do Mar, pois o tempo estava fechado e garoento. Meio contrariado e para satisfazer a esposa, fomos para cidade, fazer um turismo de lojas. Foi um boa pedida, ao contrário do que eu supus.

O centro da cidade tem ainda alguns casarões antigos, mas segundo seu Isael e dona Josie, eles estão caindo por descuido de seus proprietários. Seu Isael e dona Josie tem uma loja de artesanato num desses casarões, datado do sec XVIII, com piso hidráulico, forro de taquara, paredes de pedra e algum mobiliário, todos originais. Quando foram alugar, o proprietário disse a eles que podiam trocar tudo e colocar material modernos no lugar! Seu Isael ficou indignado, recusou-se a destruir o patrimônio histórico da cidade e por sua conta restaurou tudo. Mas segundo ele, a maioria do povo da cidade quer mesmo é prédio de apartamentos e não está nem aí para a tradição. Recentemente houve briga na câmara municipal, por causa de um projeto de lei que iria autorizar a construção do primeiro prédio de apartamentos em Cunha. Quem conseguiu segurar foi o “pessoal de fora”, pois os nativos querem mesmo é progresso.

Segundo seu Isael, a população da cidade está diminuindo. Já chegou a 30.000 e hoje está em 25.000. São os jovens debandando em busca de faculdade e empregos que remunerem melhor. Pudemos confirmar esta informação, 100% dos jovens perguntados vai deixar a cidade e não pretende voltar… A alegação comum a todos eles é: “Aqui em Cunha não tem nada, é muito parado”. Se eu fosse jovem, não sei se faria diferente. Cabe aos mais velhos tornar a cidade mais atraente, para não perder a força da sua juventude.

Uma agradável surpresa foi a descoberta de que Cunha abriga grande quantidade de artesãos do barro, na esteira do casal japonês, Toshiyuki e Mieko Ukeseki e do ceramista português, Alberto Cidraes, que se instalaram na cidade por volta de 1975. Os ceramistas utilizam a técnica Noborigama, arte milenar japonesa de fornos em série, que transforma o barro em pedra ao  atingir a temperatura de 1.350ºC.

Os resultados são obras de arte lindíssimas e só não trouxemos alguns para casa pois são peças realmente muito caras. Algumas queimas chegam a durar de 15 a 21 dias, com a temperatura dos fornos rigorosamente controlada para que o trabalho não se perca, com o rachamento das delicadas peças de barro.

Hora do almoço, barriga roncando, eu não tive dúvida, sugeri o Mercado Municipal, que é onde o povo costuma comer. Eu tenho horror desses restaurantes para turistas, onde se come mal e se paga uma fortuna. Minha esposa ofereceu uma pequena resistência, mas cedeu aos meus pedidos, afinal, eu havia passado a manhã toda fazendo a vontade dela, batendo perna pelas mais de 10 lojas que vendem cerâmicas e artesanato na cidade. Não nos arrependemos, o simpático restaurante da dona Rosa nos serviu farta comida caseira, por apenas R$ 10,00 e ainda sobrou muita comida! Imagine, salada mixta, arroz, feijão, tutú, nhoque, ovo frito e bife para duas pessoas por esse preço! Isso não existe no primeiro mundo onde eu vivo!

Depois do almoço, a pedida foi uma caminhada pela cidade, para fazermos a digestão. Lógico que minha esposa parava em cada lojinha e numa dessas paradas, eu resolvi deixa-la entretida com suas compras e por acaso acabei descobrindo o Espaço Cultural Lavapés, onde estava acontecendo a exposição Tea Party com peças de cerâmica do mundo todo. Mas o melhor de tudo foi o guia e idealizador da exposição, Rogério David, um brasileiro que fugiu do país na época do Plano Collor, viveu 19 anos na Inglaterra e hoje está em processo de mudança para Cunha. Rogério nos deu uma senhora aula ao nos explicar sobre os processos de fabricação de cada uma das 100 peças expostas, parte de sua coleção de mais de 1000 peças, que trouxe na bagagem de volta ao Brasil.

Nessas alturas eu já começava a me reconciliar com a cidade de Cunha, meu corpo e espírito haviam sido bem alimentados. Mas não ia durar muito o namoro… Logo mais, à noite, resolvemos comer uma pizza, numa pizzaria numa região até que bem cuidada da cidade. Eram mais de 8h e ao nos sentarmos, fomos informados que o forno ainda não estava quente, e que só começariam a assar pizzas dentro de uma meia hora. Tudo bem, enquanto esparávamos íamos degustar uma malzbier. O garçon, muito prosa, nos informa que apesar de constar no cardápio, estão com falta do produto. E nos sugere a substituição mais estapafúrdia que eu já ouvi de um garçon.

— Vocês não querem trocar a malzbier por um licorzinho de canela com gengibre, por conta da casa?

— Meu filho, você tomaria um sorvete de manga sendo que sua fome é de uma sopa de aspargos?

Ele pareceu não entender minha colocação e ainda insistiu:

— Ah, mas é de graça, por conta da casa, o senhor vai recusar?!?

— Deixa o licor pra lá, me traz  alguma cerveja de boa marca que você tenha aí na sua geladeira. Tem Stella Artois? Tem? Então, traz uma garrafa pra gente.

Na hora de escolher a pizza, outro sufoco. Nosso gosto era comer uma pizza de escarola, rúcula ou brócolis e fizemos o pedido.

— Ah, hoje não temos nada verde, sinto muito! O que temos mais próximo de uma pizza natural seria uma pizza de palmito.

Dessa vez eu não fui irônico, a fome já apertava, pedimos uma margherita, que de manjericão mesmo tinha umas folhinhas secas e quase sem gosto. Depois de pedida, a pizza não demorou, mas ao servir, ele colocou o primeiro pedaço no meu prato. Querendo brincar com ele, perguntei se ele costumava servir primeiro os homens…

— Ah, o senhor me desculpe, é que eu sou soldador, estou fazendo um bico aqui na pizzaria, sabe como é…

Fiquei com pena do rapaz, disse que não tinha importância, mas ao colocar a primeira garfada na boca, não acreditei, a pizza estava fria! Claro que a gente mandou voltar e isso por duas vezes, antes de eles acertarem a temperatura ideal. Uma tragédia!

Não sei se foi por nervosismo, mas o garçon aparecia a cada dois minutos e perguntava:

— Tudo bem por aí?

Ultimamente estou praticando uma política de diplomacia e por isso não respondi nada a cada vez que ele perguntou, me limitei a esboçar sorrisos amarelos… Na hora de ir embora, depois de paga a conta, ele teve a ingenuidade de nos perguntar se gostamos da pizza. Eu respondi com a primeira coisa que me veio à cabeça:

— Olha, a gente se divertiu muito e, certamente, eu terei uma boa história para contar sobre sua pizzaria…

Cansados de tanto andar pela cidade, novamente fomos dormir cedo. Dia seguinte, decidimos pegar estrada logo depois do café da manhã, para não pegar transito na Via Dutra, que costuma encher nos domingos à tarde. Quando passávamos por Cunha, me veio a idéia de comprar uma lembrancinha para minha mãe. Nessas horas eu prefiro comprar algo de comer, pois minha mãe já tem uma casa com armários atulhados de objetos que ela nunca usa e eu não quero contribuir com o excesso que ela já acumula. Assim, fomos ao Mercado Municipal, comprar um queijo parmesão novo, que eu havia visto no dia anterior. A mulher já estava embrulhando o queijo, quando alguém dos fundos da loja disse em alto e bom som:

— Veja se ele não quer levar uma goibada também, Maria Helena, acabou de chegar da roça!

O que a mulher disse sobre a goiabada me avivou a memória de um fato que tinha ficado debaixo do tapete durante muito tempo e que eu não tinha atinado  em nenhum momento durante aquela curta estada em Cunha. Minha mãe, durante minha gravidez, comeu 10 kg de goiabada, mandada vir especialmente da cidade de Cunha. Goiabada é meu doce predileto, eu troco qualquer um por uma goiabada. Ah! E o nome da minha mãe é Maria Helena. Mandei embrulhar também um bom pedaço de goiabada cascão, pra levar de presente junto com o queijo parmesão novo. Saí da cidade com a sensação de “missão cumprida”…

Chico Abelha

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