São Paulo, 12 maio 1930

       Aqui venho — meu querido Alceu — desafogar uma cousa que me tem preocupado bastante. Como quem tapa o nariz e num gole esvazia o copo de remédio entro diretamente no assunto.
       Sob o título "O trouxa" publiquei há tempos no O Jornal (estando ainda na Europa) um artigo sobre o livro de Abel Bonnard a respeito do Brasil. Bonnard se refere a uma "confissão" recebida entre nós sem declarar nome. Com a leviandade própria da raça assume nesse trecho uns ares superiores que me irritaram e apresenta o "torturado" sob um aspecto antipático. E eu desmentindo toda uma tradição paulista de prudência (sem procurar saber de quem se tratava o que me daria pé para julgar da elevação da confidência e portanto da leviandade com que foi trazida para o livro) disse com ar de brincadeira duas ou três cousas a propósito; Ora — meu caro Alceu — Bonnard aludia a você: o Rodrigo se apressou a me informar.
       Imagine agora o meu estado de humilhante desapontamento. Contra quem admiro e prezo como admiro e prezo raríssimos, inconscientemente disse bobagens que podiam feri-lo colocando-me em situação horrível: a de alguém que atira no escuro e fere um amigo. De forma que o que não fez mal nenhum a você (que está acima de futilidades assim) a mim fez e está fazendo muito.
       Não se trata de consertar uma tolice. Não tenho de mim mesmo opinião tão pessimista apesar dos pesares que empreste a outros a possibilidade de me julgarem capaz de conscientemente desagradar alguém de seu caráter e de sua valia. Porém de por fora resolver uma questão íntima, uma luta entre o minuto de boa-fé infeliz e a continuidade de um apreço sem reserva.
       Aí está — Alceu — o que precisava dizer não ao escritor mas ao homem. Porque este é que vale e por isso de minha parte o que o escritor fez impensadamente o homem lealmente repele. Não quero escrever mais deixando a você sentir o muito de sinceridade que ponho nisso e o meu empenho em que você aceite com a cordialidade de sempre o abraço amigo que lhe envia o seu

                                                                                                 Alcântara

47, na rua Frederico Xteidel
(Largo do Arouche)

       Aí no Rio o Schmidt me fez presente da última série dos Estudos. Dentro em breves dias mandarei o meu Anchieta.

Alcântara Machado

Do livro: Intelectuais na encruzilhada - Correspondência de Alceu Amoroso Lima e António de Alcântara Machado (1927 - 1933), de Francisco Assis Barbosa, Academia Brasileira de Letras, 1ª reimpressão, 2002, RJ

 

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