"LETRAS CLÁSSICAS ", POR HENRIQUE CAIRUS

Professor Dr., Coordenador do Departamento de Letras Clássicas da UFRJ (Pós-Graduação), ensaísta, poeta, co-editor de CALÍOPE: Presença Clássica, revista do Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas e do Dep. de Letras Clássicas da UFRJ. Na Internet, veicula a lista: PGclassicas - Pós-Graduação em Letras Clássicas - UFRJ e tem site pessoal: http://www.geocities.com/henriquecairus/

Coluna da segunda quinzena de outubro 2004
(próxima coluna: 04/11)

Um pouco da poesia de Leila Míccolis

E de tanto batalhar, virei... poeta

LM

            Ortega y Gasset escreveu em algum lugar de sua vasta obra  que a clareza é a generosidade do sábio. Já procurei defeitos na assertiva, e, não tendo achado nenhum, aqui a coloco, quase que como epígrafe para explicar aos leitores que visitam esta coluna a razão de ainda não haver sobre a poesia de Leila Míccolis uma teoria copiosa.

            A poesia de Leila herdou a generosidade da autora, e é sobretudo clara. De uma clareza que clareia mas também ofusca, e é capaz de ofuscar sua própria agudeza.

            O reconhecimento da profundidade parece ser merecido apenas pelo que é obscuro; o que for claro parece estar fadado à pecha de superficial. 

            A poesia de Leila pode ser superficial, claro. Especialmente se pensarmos que seu ponto de partida é a epiderme, é a percepção sensorial, como em não poucos e grandes poetas.

            A partir dessa epiderme, a poesia de Leila Míccolis adentra: adentra a carne e vai ao espírito; adentra a pessoa e vai à sociedade.

            Muitos rótulos lhe couberam, muitos movimentos identificaram com ela, a começar pelo feminismo, com o qual a vincularam por tanto tempo.  Como escreveu Paulo Leminsky, era o " feminismo explícito de Leila Miccolis". Mas o que encontramos de feminismo em um soneto como esse?:

  DE VOLTA PARA O PRESENTE
             (PARTE ÚNICA)

Hipólita, Antíope ou simples colona,
terríveis perigos, feliz, desafio,
mostrando a potência do meu poderio,
dos campos, senhora, dos píncaros, dona, 

pois sou tua eterna e soberba Amazona,
de mente sagaz e de corpo sadio,
num louco galo, em luxúrico cio,
por ínvios caminhos surgidos à tona... 

Aquiles, Teseu, o que queres que sejas,
em mim acharás o que tanto desejas:
um misto de gozo, ternura e esplendor, 

pois sou da floresta, o mistério, a clareira,
riquezas de cedro, de mogno e madeira,
tesouros de louros ao meu vencedor!

            Não estava enganado o nosso grande Leminsky, mas é bom dizer que sobre tudo a poesia de Leila é plural. Libertária, como diz Heloísa Buarque, ou artisticamente libertina, como a situa Gilberto Mendonça Teles — sem deixar de fazer uma menção a Manuel Bandeira —, mas capaz de escrever um soneto com o rigor formal que lemos acima.

            Inácio de Loyola Brandão disparou-lhe os epítetos sarcástica, irônica e impiedosa, mas parece ter sido José Ramos Tinhorão que percebeu com nitidez o alvo de tanta acidez: era a sociedade patriarcal, burguesa e hipócrita que tanto incomoda a Leila e os seus muitos leitores, e é essa mesma sociedade que encontramos denunciada na trova:

Igualdade: boca cheia
tem gente que pede a Deus
pão, para as fomes alheias,
e caviar, para os seus...

            Castiguem-me os deuses, se Drummond não tiver falado que "escrever é cortar palavras". E  há mais poder mordaz concentrado nessa trova do que poderia haver em todo um cancioneiro.

            Esse é o engajamento da poesia de Leila Míccolis. Não é o engajamento panfletário, mas o corrosivo; aquele predestinado ao fracasso da empresa social e ao sucesso de seu fim estético, por exigir do leitor algo que está entre a compreensão imediata e a reflexão profunda. A poesia de Leila Míccolis opera exatamente nesse espaço, deixando que a clareza cumpra seu papel de ser o acesso ao menos claro, e, nesse sentido, a poesia de Leila é quase sempre generosamente didática, ainda quando não parece.

            Seu didatismo, contudo, é apenas mais uma frente de sua missão múltipla. É um outro engajamento seu. Quem não será capaz de ler, nas palavras de Míccolis, um verdadeiro Castro Alves?  não um Castro Alves citado ou glosado, mas redivivo em sua indignação autêntica, pulsante e juvenil?:

  Por dois milênios África bradou
e bradar dois mil anos mais eu vou
         por Tua piedade,
que há outras mais Camboja, Laos, com fome,
com guerras, grito e sede do teu nome,
         meu Senhor — Liberdade!

            Mas esse tanto não é tudo, é, na verdade, muito pouco. O grande adjetivo de sua poesia não pode ser outro senão 'plural'. A isso arrisco-me sem medo: a dar-lhe esse adjetivo.

            Poesias não são feitas para serem estudadas (graças aos céus e a quem nele habitar!), mas ainda assim há quem o faça. Não sou um desses. Não sou e nem serei. Mas sei que a clareza espanta os maus teóricos e que a pluralidade assusta os bons.

            Por isso, talvez seja preciso ouvir ainda por algum tempo um certo lamento que diz:

INSEGURANÇA

Ninguém nunca
teorizou minha poesia.
Será que ela não vale a pena?

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