"LETRAS CLÁSSICAS", POR HENRIQUE CAIRUS

Professor Dr., Coordenador do Departamento de Letras Clássicas da UFRJ (Pós-Graduação), ensaísta, poeta, co-editor de CALÍOPE: Presença Clássica, revista do Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas e do Dep. de Letras Clássicas da UFRJ. Na Internet, veicula a lista: PGclassicas - Pós-Graduação em Letras Clássicas - UFRJ e tem site pessoal: http://www.geocities.com/henriquecairus/

Coluna da 2 ª quinzena março
(próxima coluna: 4/4)

 

“Em estado de dicionário” ou ainda o “imexível”

1

Aurélio são e Houaiss,
Caldas Aulete e Morais
para todos os mortais
e de todos nós, os pais.

        Está no dicionário o verbo ‘dicionarizar'. A definição é clara e quase unânime: “incluir em dicionário”. Esse verbo, no entanto, só tem como sujeito real o lexicógrafo, que, ainda segundo o dicionário, é quem elabora dicionários.
       Desse profissional, ainda que trabalhe em equipe, não deveríamos exigir a perfeição. Mas sempre esperamos por isso.
       Para a maioria das pessoas, uma palavra dicionarizada é o mesmo que uma palavra existente.
       Lá está o dicionário, onde encontramos, a ortoépia, o significado preciso, a regência correta, a etimologia, sinônimos, antônimos, além de expressões idiomáticas e exemplos de emprego.
       Essa massa bruta de palavras e folhas sempre ameaça nosso saber, insinuando nossa ignorância.
       Do verbo dicionarizar, veio uma palavra que assusta todos os usuários do registro culto da língua: o particípio “dicionarizado”.
       Que esse seja, então, se me permite minha generosa leitora, nosso assunto de hoje.
       Sob esse particípio repousam todas as palavras que estão ali, no dicionário. Todas as palavras que ali descansam à espera de quem as tome para uso. Isso é maravilhoso, é certo. Lembra-nos as notas musicais que repousam em nossa memória auditiva, e que, dela saindo, podem gerar as mais belas sinfonias e os mais desastrosos ruídos. Assim também a palavra dicionarizada.
       “Dicionarizado”, contudo, também esconde uma ameaça repressora, que não se pode negligenciar. Esse particípio abriga, além de suas possibilidades de desdobramento e uso, o símbolo máximo do poder lexicográfico, o cetro real da lexicomania pseudo-erudita, a desrazão esdrúxula de considerar-se que um dicionário pode registrar ou oferecer todas as possibilidades lexicais de uma língua.
       Um termo não dicionarizado só pode ser usado em itálico, dizia há não muito tempo uma regra natimorta da escrita formal.
       Mas então uma palavra não é digna de letras redondas senão dicionarizada?
       Os problemas acerca desse tema já foram debatidos por grandes filólogos à época que certa figura pública teria malfadadamente dito a palavra não-dicionarizada “imexível”.
       Lembro-me do saudoso Antonio Houaiss oferecer lições de morfologia lingüística a vários meios de comunicação, pelos quais bradava que nada havia de errado com a expressão ministerial. Em vão! O dicionário falou mais alto do que o organizador do que viria a ser o maior dicionário contemporâneo da Língua Portuguêsa. Imexível não constava do dicionário. Agora consta: está no Houaiss. E nem assim reabilita-se o ministro.
       Um dicionário cresce. Cresce de edição para edição, assimilando neologismos, e cumprindo a tarefa de discernir entre efemeridades e ingressos permanentes. Difícil tarefa, sem dúvida!
       Não poderia haver, claro!, um dicionário completo. Uma língua tem falantes, os falantes incormporam vocábulos de outras línguas, inventam algumas palavras, criam códigos específicos, que ou sucumbem ou tornam-se mais gerais.
       Tudo isso impediria e restringiria o alcance do dicionário, mas ainda não é a sua única limitação.
       Pode-se citar pelo menos mais duas: a potencialidade derivacional das raízes e as variações no tempo e no espaço da regência e do significado de uma mesma palavra.
       Essas dificuldades trazem-me a alegria de saber-me em outra profissão que não a de lexicógrafo, mas estão muito longe de serem as únicas. Antes, são algumas das muitas.
       Por outro lado, essas dificuldades do ofício do lexicógrafo dependem de um fator fundamental: que a língua tenha falantes, e que esses falantes estejam vivos (e criativos). Esse não é, como sabemos, o caso do grego (antigo) e do latim, assim como o de muitas outras línguas. Por isso, querida leitora, corri ao nosso título coloquei-lhe um número 'um', para que na próxima coluna conversemos sobre esses dicionários de nossas amadas línguas mortas. Até lá.

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