JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados,
entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator.

Coluna de 24/11

Hegemonia, nem pensar!

O povo não votou contra a reeleição de Lula, mas contra o absolutismo do PT

É possível tirar várias lições políticas relevantes de eleições, principalmente no caso destas últimas, nas quais o eleitorado se manifestou de maneira exemplar, independente e madura. Mas não deixa de ser prudente ir logo admitindo que muitas asneiras são produzidas para explicar triunfos ou justificar malogros. Em particular num panorama tão variado e complexo como é o das disputas municipais - cada uma delas singular, mas com todas reunidas compondo um conjunto de tendências e avaliações. No meio do choro e do ranger de dentes dos petistas arrependidos pelos erros cometidos, que lhes fizeram escorrer pelas mãos jóias reluzentes da coroa do poder, a cúpula do partido no governo federal lamentou a perda da classe média, que consagrou Luiz Inácio Lula da Silva há dois anos e massacrou Marta Suplicy, Raul Pont e Ângelo Vanhoni em 31 de outubro. Dito assim de chofre, até parece um truísmo. Na verdade, é uma tolice. Pois o que pode distinguir a classe média de Recife da de Porto Alegre ou a de Belo Horizonte da de São Paulo? Afinal, nas capitais de Pernambuco e Minas os prefeitos petistas esmagaram a concorrência no primeiro turno com um volume de votos acachapantes, enquanto os correligionários de Piratininga e do Guaíba ficaram a ver navios, e muito de longe.

Massacrada por uma carga tributária injusta e onerosa demais, a classe média agradece os acenos que o governo, em conseqüência de tais derrotas, tem feito nesta área, embora saiba que o objetivo deles é melhorar a imagem do presidente às vésperas da disputa por um novo mandato. Desde logo, avisa que não se satisfará com promessas vazias de reduções de impostos que pouco aliviem o peso do Estado estróina de suas costas e continua à espera de uma reforma radical na prestação dos serviços elementares que este não consegue prover.

Essas tentativas de estabelecer nexos de causa e efeito entre o pleito de 17 dias atrás e a disputa daqui a dois anos por Presidência, Estados e Legislativos federal e estaduais, têm mais objetivos eleiçoeiros futuros que justificativas factuais passadas. Lula é grato a Marta pela ajuda que ela lhe deu em 2002. Mas mesmo sem ela ele não deixaria de ganhar aquela eleição - como o comprova agora o fato de ela própria não ter prestígio eleitoral sequer para derrotar o candidato sobre o qual ele triunfou. A influência de Celso Pitta, Paulo Maluf, Luiza Erundina e Jânio Quadros, os prefeitos eleitos diretamente de 1985 para cá, nas eleições dos presidentes Fernando Collor e Fernando Henrique e dos governadores Orestes Quércia, Luís Antônio Fleury e Mário Covas foi nula. Assim como a vitória de Marta em 2000, numa disputa em que Geraldo Alckmin sequer chegou ao segundo turno, não impediu a vitória deste na eleição estadual de 2002.

O PT só tentou "federalizar" estas eleições municipais porque dava como certas as vitórias de Marta Suplicy e Raul Pont, principalmente, mais as de João Paulo e Fernando Pimentel, para depois usá-las como plataformas de lançamento para o projeto da reeleição de Lula - uma estratégia legítima, mas deficiente. Como naquela famosa anedota da preleção do técnico Vicente Feola antes do jogo do Brasil com a União Soviética, na Copa do Mundo de 1958, quando Garrincha, após ouvir com atenção a instrução para driblar o lateral e cruzar a bola para Vavá marcar, perguntou se isso havia sido combinado com os russos, o PT cumpriu direitinho o script , mas se esqueceu de acertar com o eleitor. Foi só isso que ocorreu!

Livre de quaisquer compromissos, o cidadão não foi às urnas aprovar ou reprovar a política econômica do governo (como repete a rancorosa esquerda petista) nem prejulgar as intenções do presidente de ficar no governo mais quatro anos. Mas, já que o PT queria tanto "federalizar" as eleições, o brasileiro aproveitou para lhe mandar um recado: não um desaforo, mas um aviso; não uma ameaça, mas uma lembrança.

Ocorre que, ao assumir o poder na República, o PT cumpriu direitinho o figurino de manutenção da política de rigor fiscal e austeridade financeira, prometido na campanha para combater o terrorismo eleitoral de seus adversários, que investiram no medo do que poderia provocar uma ruptura com o status quo econômico, alinhavado em seus projetos econômicos históricos. Num clima de alívio, grata até, a Nação mostrou ter entendido o que significa essa postura séria, mas contraditória em relação ao discurso tradicional do partido, e tem correspondido ao presidente com altos índices de aprovação. Embora seu governo, do ponto de vista das realizações que poderiam ser esperadas das ambiciosas promessas de campanha, esteja muito aquém do que com ele se contava. Nem sequer a oposição parlamentar tem reclamado muito, por exemplo, do evidente descumprimento da promessa da criação inviável de dez milhões de empregos.

Mas a sociedade brasileira percebeu que o governo Lula também padece de certa esquizofrenia: se seu lado médico - representado por Antônio Palocci, Roberto Rodrigues e Luiz Fernando Furlan, principalmente - tem evitado as convulsões que se previam na área da política financeira, sua porção monstro, com poder equivalente, mas mais representantes no Ministério - entre eles José Dirceu, Luiz Gushiken, Miguel Rossetto, Marina Silva e Tarso Genro -, parece disposta a se aproveitar da passagem pelo poder para executar um projeto de hegemonia. Esse plano não condiz com as convicções democráticas do povo brasileiro e este votou contra ele, de forma pacata e consistente. O recado, portanto, é simples: governo, sim, mas hegemonia, nem pensar. A maioria quer a diversidade, o balanço de forças, mas jamais o predomínio de uma sobre as outras.

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