JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados,
entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator (clique para ler a fortuna crítica).

Coluna de 22/12

Quem tem medo de Lêdo Ivo?

Dois ("ledos e ivos", diria um gozador) enganos cometerá quem se deixar levar pelas aparências e temer enfrentar o tijolaço impresso com a Poesia completa, de Lêdo Ivo, seja pelo peso do volume, seja pelo semblante carregado de preocupações e mistérios que se afigura na capa no retrato do autor, no qual o alto contraste de luz e sombra lhe impõe um ar grave e profundo. O porte do volume revela obra copiosa, mas nunca enxundiosa: não sobra uma só palavra em cada uma de suas 1.100 páginas. É isso que torna sua leitura muito mais leve do que fazem pressupor o peso do livro e a tradição de auto-indulgência, proporcional à crueldade com o leitor, de vários colegas do poeta. A melancólica expressão de seu rosto, reforçada pelo franzir do cenho e pelo marcante desenho da sombra de ruga baixando da narina à comissura do lábio no lado esquerdo, pode, de fato, refletir um mergulho nos mistérios nem sempre gozosos da vida delatada pela poesia. Mas não deverá ocultar a irreverência, o humor, a ironia e muitas vezes o sarcasmo com que o poeta exibe as fragilidades da condição humana, sem ocultar as do próprio estro.

Não se arrependerá o leitor que resolver ir além dessas ilusões de ótica e tato, pois o que lhe serve o volume é muito mais que uma obra decente de um artesão competente e consciente do objeto selvagem (apud Mário Chamie) da literatura. A navegação de longo percurso desse alagoano de Maceió, que passou por Recife (a exemplo do baiano Castro Alves e do paraibano Augusto dos Anjos) e deu com os costados no Rio de Janeiro, é a ditosa descoberta de uma lavra profícua, que se renova quando repete e se reconstrói ao renegar.

Imperfeição da pressa - O percurso até essa conclusão passa pela superação de enganos cometidos ao longo deste último meio século por críticas apressadas (<CF331>et pour cause</CF> imperfeitas), que, talvez por tornarem uma inexorável coincidência cronológica por opção estética (Lêdo Ivo está para a geração de 45 como seus contemporâneos pernambucanos Mauro Mota, Carlos Pena Filho e João Cabral de Melo Neto), ainda não deram a Lêdo o que de Lêdo sempre foi: o reconhecimento de seu alto posto de lírico-mor da Pátria (aqui enunciada no sentido pessoano como sinônimo desta nossa língua materna, inculta e bela). Não é por escrever belos e exatos sonetos que Lêdo merecerá o anátema de contestador reacionário da revolução do coloquialismo modernista, sempre disparado (e nem sempre com razão) contra os contemporâneos de Domingos Carvalho da Silva e Péricles Eugênio da Silva Ramos.

Neste princípio de século 21, o consumidor de poesia que não se contentar com chavões críticos e preconceitos acadêmicos encontrará guia seguro para separar o joio do trigo da leitura a ser feita da obra desse grande poeta no texto inspirado e autorizado que o editor José Mário Pereira encomendou ao poeta e crítico Ivan Junqueira. O título da introdução - "Quem tem medo de Lêdo Ivo?" - já lhe denuncia o tom. Decifrador dos enigmas da opulência, dos excessos e da magia encantatória do poeta, o tradutor da obra de Eliot, que também chega às livrarias, resumiu, de forma lapidar, o que o apreciador da boa literatura tem pela frente ao mergulhar nas imagens e no ritmo dos versos editados, facilitando e tornando inócua a tarefa do resenhista.

O carvalho de Heidegger - Basta citá-lo: "Lêdo Ivo chega inteiro aos 80 anos de idade. E inteira chega também a sua poesia. Foram poucos os poetas que o conseguiram. Há nele a lição daquele carvalho heideggeriano que, em sua aparente imobilidade, ainda assim se move e se transmuda sem cessar, como certa vez observou o romancista Per Johns, leitor de poetas. E há em sua poesia o testemunho de mais de meio século de experiência e de constante renovação estética e estilística. Há, ainda, a fidelidade de quem, à margem das gerações e dos movimentos literários, permaneceu idêntico a si próprio, pois a maneira de ser do poeta que escreveu Ode e elegia é a mesma de quem, sessenta anos depois, nos perturba com os poemas de Plenilúnio".

Após haver ensinado que "tudo é sempre nada / e coisa nenhuma" (O poeta modesto), este aprendeu que "toda eternidade termina em fumaça" (Forno crematório). Capaz de rolar com leveza a pedra de Sísifo da vida vã, como um pégaso que transporta montanhas, percorre páramos e ausculta abismos, Lêdo Ivo namora a eternidade sem perder a noção de que "os poetas continuam sendo os timoneiros do mundo" (Poema em memória de Éber Ivo). Modéstia inclusa!

Poesia completa, de Lêdo Ivo, Topbooks Editora e Braskem, 1.100 páginas, R$ 69.

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