JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados,
entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator  (clique ao lado para ler a fortuna crítica).

Coluna de 17/02

O besteirol para conquistar eleitor deveria ser punido pela lei eleitoral

O metalúrgico de origem Luiz Inácio Lula da Silva não é o primeiro político com notórias deficiências cuturais na história do Brasil. Nem sequer o primeiro chefe do Estado em tais condições: brasileiros com mais de meio século de vida se divertem até hoje com anedotas protagonizadas pelo marechal Eurico Dutra numa época em que o atual ocupante do cargo ainda vestia calças curtas. E, se é verdade que o vendaval de tolices produzidas pela burocracia nacional tem vivido uma época áurea, não podemos nos esquecer de que quando Sérgio Porto, adotando o pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta, cunhou a expressão Festival de Besteira que Assola o País, o presidente nem sonhava seguir carreira política. Seria extraordinário, para não dizer impossível, que as carências de nosso sistema educacional não repercutissem na esfera pública. O que perturba (e prejudica) no bestialógico da lavra do PT no poder é menos o fato de ele existir e mais sua aparente vocação para persistir e se reproduzir. O que, de início, parecia denunciar preconceito social pode se ter tornado, pelo avesso, uma perversa vantagem comparativa de marketing político.

Chega a ser um truísmo inócuo constatar que Sua Excelência fala demais. Quem pratica esse tipo de excesso pode correr, segundo relata a sabedoria dos antigos, o risco de sair por aí saudando bestas e quetais. E, ainda que não o faça, dificilmente deixará de produzir ratas, escorregõas e agressões ao vernáculo e - o que é mais grave - à lógica plana e à verdade crua dos fatos. Quando Lula disse que "a gente tem que ser gentis" era possível argumentar que talvez fosse pior se ele tivesse dito "a gente temos que ser gentil". Da mesma forma, o erro aritmético de uma alocução como "os jovens só precisam de uma palavra: amor, carinho e compreensão" tem menos conseqüências danosas que a crítica que ele fez ao desempenho da Febem no governo estadual do possível adversário na luta pela releição, o governador paulista tucano Geraldo Alckmin, após ter ele próprio errado ao suspender a ajuda federal à instituição que abriga menores infratores e carentes. Menos que o teor dos discursos é nocivo ao bom governo, que Sua Excelência conquistou legítima e meritoriamente nas urnas, o exagero da repetição deles. Pois é o palanque o lugar menos adequado para a tomada de decisões capazes de influir no destino de milhões de pessoas, em particular as desassistidas do Estado, às quais o orador mais se dirige.

Esse excesso de retórica (que costuma levar à retórica excessiva) conduz o chefe do governo à perigosa trilha da hipérbole, que dificilmente corresponde à realidade comezinha. O diabo é que, vindo de cima, o irrealismo (beirando o surrealismo) gera, mesmo sem querer, frutos envenenados. Na semana passada, Lula disse que o século 21 será do Brasil, assim como o 19 foi da Europa e o 20 dos EUA. Como em 95 anos nem ele estará vivo para comemorar nem este escriba poderá mais cobrar, seria o caso de deixar para lá, não houvesse, contudo, um exemplo de como essa distância entre fantasia e realidade pode produzir uma alienação de efeitos maléficos. Também na semana passada, um burocrata federal de escalão inferior, Eduardo Calheiros, coordenador de estruturas do Departamento Nacional de Infra-estrutura dos Transportes, atribuiu a queda da ponte na Régis Bitencourt às intempéries naturais e às particularidades da topografia, inocentando-se e a seus subordinados de eventual incúria quanto à manutenção. Como chove muito em Londres e a ponte pênsil continua funcionando e como os viadutos de Tóquio resistem até aos terremotos (e eventuais vendavais na Ásia), bastando para isso aplicar bem o dinheiro público disponível, o mínimo que um governante competente teria de fazer seria exonerar exemplarmente esse subordinado. Se não por outra razão, pelo menos pela óbvia de que jamais dominará o século o país onde o uso corriqueiro das obras de engenharia dependa de índices pluviométricos ou da natureza do solo sobre o qual são erguidas.

Para chegar ao poder no regime democrático, o político precisa seduzir o maior número de eleitores e, para tanto, tem de se fazer entender. Ser simples, contudo, não implica ser simplório. Conquistado o poder, o estadista digno dessa denominação tem de exercê-lo em sua plenitude e correspondendo às expectativas (no caso de um país pobre como este, esperanças) de quem o elevou ao posto de mando. A reeleição do presidente é um instituto válido, por permitir ao eleitorado repetir o bom gestor e se livrar do mau. O recurso exclusivo ao discurso da permanente denúncia vazia, seja como biombo para ocultar inércia burocrática, seja como pretenso nivelamento por baixo para se fazer entender, embora lícito, não é digno. Essa forma aparente de enfrentar o preconceito elitista não passa, ela mesma, de uma manifestação do pior preconceito: o de que para agradar o súdito mais estúpido o príncipe é forçado a se fingir de mais estulto. Pois consta das obrigações comezinhas deste elevar os padrões da sociedade que governa, e não procurar ganhar a simpatia dos menos letrados para lhes garantir o "privilégio" suicida de ficar chafurdadando no pântano infecto da ignorância.

Ninguém pode execrar (embora todos devam lamentar) o besteirol petista, pois ele resulta mesmo de nossas profundas carências de instrução e cultura. No entanto, o uso cínico desse defeito como se fosse uma virtude cívica para escrachados fins de marketing político é algo tão condenável, dos pontos de vista ético e institucional, quanto a adulteração de mapas eleitorais e a compra de votos. E, como esses velhos instrumentos de dominação econômica e política, deveriam também ser passíveis de dura punição pela legislação eleitoral.

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