JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados,
entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator  (clique ao lado para ler a fortuna crítica).

Coluna de 24/03

Esses livros maravilhosos e seus autores... nem tanto

O título da série de artigos publicados pela revista Manchete há 30 anos e escolhido para os dois volumes que acabam de ser lançados pela Record – As obras-primas que poucos leram – não parece o mais adequado. Seja porque nem todas as obras escolhidas para terem seus perfis traçados por grandes críticos e jornalistas em atividade à época merecem a primícia máxima – tais como Romola, de George Eliot, As minas do rei Salomão, de H. Rider Haggard ou Bubu de Montparnasse, de Charles-Louis Philippe, entre outros exemplos, como os de equívocos na escolha entre as obras dos autores: A peste, em vez de O estrangeiro, de Albert Camus, ou Pedra Bonita, e não Fogo Morto, de José Lins do Rego, para citar dois entre vários. Embora ainda seja provável que livros como o quatrocentão Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes, seja muito mais exibido em estantes que lido, talvez seja um tanto exagerado afirmar que Frankenstein, de Mary Shelley, e Os miseráveis, de Victor Hugo, tenham poucos leitores. A exceção que confirma a regra é o primoroso, mas pouquíssimo lido Ulisses, de James Joyce, apresentado pelo mais conhecido de seus tradutores para o português, o lingüista Antonio Houaiss.

Exemplos a destacar deste equívoco há dois. O primeiro é O apanhador no campo de centeio, de J. D. Salinger. O autor destas linhas o considera um texto fundamental no século 20 (no caso a segunda metade), ao lado de Eichmann em Jerusalém - relato sobre a banalidade do mal, de Hannah Arendt, e do supracitado O estrangeiro, de Albert Camus. Mas o brilhante crítico de origem austríaca Otto Maria Carpeaux, autor do maior número (23) dos 70 perfis reproduzidos nesse lançamento, arrasou-o sem dó, criticando da escolha insatisfatória da tradução do título (The catcher in the rye) para o português ao decantado tratamento estilístico da linguagem adolescente pelo autor. "Não é um romance de infantilismo. É um romance infantil", fulminou. Seja como for, é uma licença poética descabida achar que, obra-prima ou não, este foi um livro pouco lido. O excepcional texto do poeta José Lino Grünewald que encerra o segundo volume da série, sobre o romance O casamento, do genial dramaturgo Nélson Rodrigues, é o outro exemplo. O autor catou frases isoladas que denotam a genialidade da verve rodriguiana. Tais como "Se cada um conhecesse a intimidade sexual dos outros, ninguém falaria com ninguém". O conjunto dessas tiradas magníficas, contudo, não torna O casamento uma obra à altura de peças como Vestido de noiva e das crônicas esportivas imortais de Nélson.

Sexo, racismo e homofobia - Imensa tolice, contudo, fará quem se prender a pormenores como os citados acima para deixar de lado a oportunidade de travar contato com a graça, a leveza e a carga de informações relevantes (ou não, e daí?) sobre livros que marcaram época na história da literatura mundial. O conjunto desses perfis, selecionados pela argúcia da escritora e colunista de jornal Heloísa Seixas, fala bem de uma época em que uma revista tida como popularesca, caso da Manchete, investia tanto e tão bem em textos de tal envergadura. E mal destes nossos tempos em que a imprensa curvou definitivamente a própria espinha ao mercado editorial, tratando a boa literatura como uma filha bastarda e maldita das listas de livros mais vendidos e dos temas de ocasião. E mal ainda da crítica estruturalista acadêmica que, ocupada com a contemplação narcisística do próprio umbigo, recusa ao leitor comum informações que o motivem a encontrar o deleite inenarrável da boa leitura.

Ao escrever sobre Filhos e amantes, o poeta e acadêmico Lêdo Ivo lembra a excitação que a descrição do conúbio sexual da dama aristocrática com o jardineiro do marido no clássico O amante de Lady Chatterley, do mesmo autor, D. H. Lawrence, e certamente conduz o leitor curioso pela mão a uma livraria para adquirir essa obra. Em 1975, não se sabia ainda que o filho de mineiros se baseara na traição da própria mulher, a alemã Frieda, com o italiano Antelo Ravagli, como revelou este Caderno 2 domingo passado. Mas o leitor da Manchete, há 29 anos, já fora devidamente informado de que Lawrence, condenado como pornógrafo, era, na verdade, um moralista que se chocava e embaraçava com a mania da mesma Frieda de andar nua pela casa. Lêdo Ivo também escreveu um deliciso perfil de seu amigo e conterrâneo (alagoano) caturrão Graciliano Ramos, que era, segundo ele, racista, homófobo e bronco ideologicamente. Um sertanejo típico, como pode testemunhar o autor desta resenha.

Os gênios também erram - Otto Maria Carpeaux produziu as melhores tiradas da série, deixando claro que não se fazem mais críticos que sabem escrever, como antes. Logo no primeiro perfil do primeiro volume, ele contou que, em 1931, numa festa cult em Berlim, um sujeito estranho se apresentou a ele como sendo um certo "Kauka". Era Franz Kafka, considerado o mais influente romancista do século 20 e de quem OMC escreveu sobre O castelo, embora muitos acreditem que sua obra seminal seja Metamorfose, história de um homem que certa manhã acorda transformado num inseto. No texto que escreveu sobre Trópico de câncer, indiscutivelmente a obra-prima (e lidíssima) de Henry Miller, o mesmo crítico observou: "No início, foi mesmo alfaiate. Mas descobriu cedo sua aversão ao corpo humano vestido". Que crítico hoje escreve com essa graça, hein, amigo leitor? Ou ainda: que crítico teria o peito que ele teve de afirmar que Miguel de Cervantes escreveu "muita porcaria"?

A relação de canalhas entre os grandes escritores é bastante alentada. Brilha no topo Louis-Ferdinand Céline, racista, fascista e delator, mas dono de uma música singular na literatura francesa, presente em Viagem ao fim da noite. Sobre André Malraux, autor de A condição humana, OMC chegou a escrever: "Às vezes é difícil reunir a irrestrita admiração de um grande escritor, de um grande artista, e a irresistível antipatia que dele se irradia". O André Gide de A sinfonia pastoral, merece tratamento semelhante de seu resenhista, Josué Montello.

Escroques de gênio - Ao leitor, fascinado e muitas vezes ofuscado pelo brilho dos holofotes desta sociedade de consumo, pode parecer estranho, mas a verdade é que a leitura deste livro extraordinário nos dá muitos exemplos de contradições entre obra e autor. Charles Dickens, que descreveu magistralmente a miséria da periferia londrina em romances como David Copperfield, não era um austero militante social, mas um bon vivant que trocou a esposa humilde por uma atriz de sucesso e reescreveu meticulosamente a própria biografia para torná-la condizente com a ficção que engendrou. Daniel Defoe, criador de Robinson Crusoe, era um consumado mau caráter. O Henry, o Sherazade americano, não passava de um escroque trapalhão. O autor de As aventuras de Tom Sawyer, Mark Twain, moleque, anarquista, infantil e humorista, era o pseudônimo de Samuel Clemens, bem-comportado, calvinista e moralista. Por isso, desistiu de conspirar a favor da revolução com o colega russo Máximo Gorki, ao descobrir que a mulher que o acompanhava numa viagem em sua companhia não era sua legítima esposa, segundo o relato de Ruy Castro.

Mas não é bom (e útil) saber que Hans Christian Andersen, como Peter Pan, nunca cresceu e, por isso, criou fábulas maravilhosas como O rei está nu? Segundo Otto Maria Carpeaux, isso se deveu a seu homossexualismo enrustido. O certo é que o maior autor de histórias infantis escrevia como as crianças que o lêem com prazer, mas nunca teve filhos. Não é ainda interessante ser informado de que o folgazão Leonardo Pataca, protagonista do magnífico folhetim Memórias de um sargento de milícias, de Manoel (vulgo Maneco) Antônio de Almeida, é um tipo à altura de Brás Cubas, Macunaíma e Riobaldo? Então, leia!

As obras-primas que poucos leram, organizado por Heloísa Seixas, 2 vols., o 1° com 490 pp. e aR$ 52,90 e o 2° com 364 pp. e a R$ 41,90

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