JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator  (clique ao lado para ler a fortuna crítica).

Coluna de 05/05

A quase-lógica das meias-verdades

Sempre inculpando outros, Lula é fiel à postura petista do dedo em riste

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva abriu a semana passada dando uma contribuição original à teoria econômica, particularmente à questão da usura, ao desviar a discussão em torno da culpa pelos juros altos vigente no País dos banqueiros que os praticam e do governo que regulamenta a atividade destes, inculpando o devedor. O brasileiro de classe média “não levanta o traseiro” para procurar um banco que cobre taxas mais razoáveis pelo dinheiro que empresta, argumentou ele, ao lado de um dos papas da teoria econômica petista, o professor Paul Singer, ao anunciar um programa de crédito popular. E a encerrou dizendo, em entrevista coletiva à imprensa, que um dos três erros que reconhece nos 28 meses de seu governo é recorrer apenas às altas taxas de juros para evitar a explosão da inflação.

Algum brasileiro menos atento pensará que Sua Excelência se corrigiu, transferindo de volta para o governo a culpa que lhe cabe, pois, como passaram a semana toda repisando os especialistas, não há possibilidade de encontrar diferenças razoáveis do custo do dinheiro apenas mudando de banco. Além do mais, a única responsabilidade do cidadão na questão das altas taxas de juros é ter votado nele. Pois, afinal, quem escolheu a política fiscal e monetária do Banco Central foi ele e – justiça lhe seja feita – ela já havia passado a ser defendida na campanha eleitoral depois que o ex-prefeito petista de Ribeirão Preto Antônio Palocci assumiu o posto de coordenador de programa do governo, com a morte do antigo titular, Celso Daniel, ex-prefeito petista de Santo André. E, se alguém ainda tivesse alguma dúvida sobre essa opção, o próprio Lula tratou de dirimi-la exatamente na mesma entrevista coletiva de sexta-feira, quando fez uma apaixonada defesa do ministro da Fazenda, dizendo serem eles dois “unha e carne”.

Na verdade, contudo, o uso da metáfora popularesca, que, aliás, nada tem de chula (só o fato de os tucanos preferirem derrière não transforma a palavra traseiro num palavrão), e a crítica velada a uma linha política econômica que ele tem avalizado amiúde – enfrentando por isso a antipatia declarada da cúpula de seu partido, personificada no novamente superpoderoso chefe da Casa Civil, José Dirceu – não são inusitadas nem incoerentes entre si. Ao contrário, em ambos os casos o presidente da República se mostrou fiel a duas das mais corriqueiras culturas de seu partido e à própria biografia.

Ao reclamar do comodismo do cidadão que aceita passivamente as altas taxas de juros cobradas pelos bancos, apelando para a recorrente parábola do chopinho das sextas-feiras, ele se manteve coerente com uma das poucas posturas que o PT tinha quando na oposição e continua mantendo depois de haver assumido o poder federal: a do dedo em riste. Na oposição, o PT não tinha dificuldade em encontrar nos adversários do governo a culpa por tudo: pelos erros deles ou até pelas intempéries da natureza. Desde que assumiu o governo, a postura é exatamente a mesma: se algo não funciona na própria administração, a culpa é da “herança maldita” recebida do antecessor, da falta de patriotismo da oposição parlamentar ou da deficiente brasilidade do empresariado. De tanto repetir esses argumentos, eles foram perdendo eficácia até o presidente apontar seu dedo em riste para a falta de mobilidade dos quadris do cidadão de classe média. E, aí, não teve dúvida: “a culpa é sua”, tascou, sem dó nem piedade. Afinal, Lula e o PT se devotam, como poucos, à velha máxima sartriana de “o inferno é o outro”.

Essa transferência da culpa para outrem é reforçada pela afirmação permanente do “isso não é comigo” (ou “conosco”, dependendo da ocasião). É o reforço necessário para transferir a responsabilidade do chefe do governo ou de sua equipe para quem ouse opor-se a seus projetos de poder. Essa é a lógica da crítica velada à política monetária que ele mesmo escolheu. Candidato à reeleição, o presidente equilibra-se no palanque fingindo que nada tem que ver com o que seus subordinados fazem ou deixam de fazer: juro é com Palocci e Meirelles, não com ele. E, se alguém tiver alguma dúvida da eficiência da tática, está convidado a compulsar sua popularidade registrada em pesquisas de opinião pública e compará-la com a de sua equipe de governo.

Lula opera esse milagre de reconhecer um erro óbvio sem assumir o compromisso de corrigi-lo por ser competente no uso da quase-lógica e de meias-verdades. Quando garantiu, na coletiva, que o objetivo da MP 232 era devolver parte do dinheiro indevidamente cobrado do trabalhador pelo Imposto de Renda, ele não mentiu, apenas omitiu a evidência histórica de que seu governo esgotou toda a artilharia disponível para compensar essa “perda” tomando dinheiro dos prestadores de serviços, até ser, por isso, fragorosamente derrotado no Congresso. Outra derrota fragorosa no mesmo campo de batalha, a de Luiz Eduardo Greenhalgh (PT-SP), seu favorito para a presidência da Câmara dos Deputados, foi reinterpretada por ele como um triunfo, já que o vencedor, Severino Cavalcanti (PP-PE), pertence a uma das bancadas de apoio a seu governo.

Coerente com essa tática (a serviço do “vale-tudo pela reeleição”) é a defesa que fez, na ocasião, do ministro da Previdência, Romero Jucá (PMDB-RR). “Não faço com os outros o que não quero que façam comigo”, justificou-se. Ao informar que só demitirá o denunciado quando as acusações transitarem em julgado, o presidente deu, sem perceber, um argumento de defesa para que Fernando Collor seja premiado pelo mesmo benefício da dúvida: 14 anos depois de impedido no Congresso, o ex-presidente nunca foi condenado.

É como diria o conselheiro Acácio: não há meia-verdade que seja inteira nem quase-lógica que seja completa.

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