JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator  (clique ao lado para ler a fortuna crítica). novo

Coluna de 19/05

Acima das ideologias e dos interesses

A democracia é um valor absoluto que o presidente precisa aprender a defender

É notória a preferência de nosso presidente Luiz Inácio Lula da Silva por programas culturais mais descontraídos, tais como os espetáculos de Zeca Pagodinho e as piruetas de seu ministro da Cultura, Gilberto Gil. Talvez fosse de bom alvitre, contudo, Sua Excelência programar entre uma fitinha nacional e outra no Palácio do Planalto a exibição de um filme em cartaz no circuito nacional de cinema comercial. Um filme falado , do nonagenário português Manoel de Oliveira, cineasta desde os tempos do cinema mudo, contém, ao mesmo tempo, lições de história da milenar cultura mediterrânea, uma aula de sensibilidade e bom gosto estético e, last but not least , ensinamentos políticos de grande valia para chefes de Estado nestes atuais tempos delicados e arriscados.

Num cruzeiro marítimo fictício, do qual uma professora de história portuguesa e uma encantadora filha dela são passageiras, é possível até destacar uma passagem que, se tivesse sido previamente vista (e entendida, é claro) por Sua Excelência, este não teria incorrido num escorregão conceitual sem conseqüência alguma se tivesse sido cometido na cantina do Sindicato dos Metalúrgicos, mas que certamente é de gravidade bem maior por ter sido proferido por ele na condição de chefe de governo. Ao tentar explicar a ausência de compromissos com a democracia no documento final, redigido em Brasília, da Cúpula da América Latina e dos Países Árabes, nosso peripatético de Garanhuns saiu-se com um argumento que, como se diria nos velhos tempos, é mesmo de cabo-de-esquadra. Pontificou ele que os conceitos de democracia variam de acordo com as culturas das sociedades que os exercem. Essa justificativa simplória pode valer para tratar de assuntos mais prosaicos como a emissão de gases por via oral após as refeições, que, se para os árabes visitantes são elogios explícitos à qualidade do repasto servido, para os anfitriões ocidentais, ao contrário, são apenas ruidosas manifestações de incivilidade no sagrado momento da refeição. Mas evidentemente isso não pode ser transferido para nobres conceitos, tais como o soberano comando do próprio destino por uma sociedade civilizada e seus direitos à liberdade de expressão, informação, credo religioso e empreendimento. Estes são valores inalienáveis e absolutos.

Em defesa de nosso presidente, talvez se possa argumentar que este não foi o primeiro ocupante do cargo a patinar em tão simplória falácia. O general Ernesto Geisel, a quem, de resto, a Nação deve a tal distensão democrática lenta e gradual, já havia dito publicamente que a democracia é relativa. A diferença entre um e outro é que o civil foi eleito livre e soberanamente pelo povo e tem a obrigação de zelar por esse preceito, independente de desvios culturais. Já o militar, ungido por pares armados, a partir de critérios próprios da hierarquia da caserna, mas não legitimado pela majoritária vontade popular, podia encontrar na relatividade democrática um bom pretexto para a cínica usurpação do poder republicano, que exercia em nome de seu estamento fardado. Ao atual presidente, contudo, não se pode permitir esse luxo descabido de tirar o brilho das cores vivas da faixa que recebeu por legítima designação da soberana vontade coletiva.

No citado Um filme falado , do cineasta luso iniciado no cinema mudo, um diálogo à mesa do capitão do navio que faz o cruzeiro pelos locais históricos da civilização mediterrânea, uma atriz e cantora interpretada pela diva Irene Papas lamenta que sua língua materna, a grega, seja confinada, no mundo contemporâneo, apenas a seu país, hoje pequeno e desimportante no concerto internacional. Mas será o caso de lembrar que os esforços dos grandes divulgadores da cultura grega - principalmente dois estrangeiros, o guerreiro Alexandre, que foi da Macedônia, nos Bálcãs da Europa Oriental, à Índia e de lá ao Egito, onde fundou Alexandria, e o apóstolo Paulo, que pregou o Evangelho cristão na Ásia Menor - semearam palavras e conceitos usados até hoje nas mais faladas línguas do planeta globalizado. Entre elas figura utopia , a fantasia da sociedade igualitária também capaz de produzir tiranias brutais.

Outro termo que herdamos dos conterrâneos da atriz grega é democracia e, em qualquer das línguas que o importaram do grego, ele quer dizer uma coisa só: a prerrogativa de uma comunidade de decidir o próprio destino, dispensando para tanto os serviços dos tiranos, sejam eles esclarecidos ou não sejam. Não há aumento de intercâmbio comercial que permita ao governante de uma democracia - caso de nosso presidente - justificar práticas antidemocráticas de parceiros, por mais divisas de que disponham estes para engordar nossos cofres. Tais divisas serão sempre bem-vidas, porque elas ajudam a reduzir nossas carências, que são, reconhecidamente imensas. Mas nem todo o petróleo do mundo e o ouro que por ele for pago terão o condão de modificar o significado desta bela palavra que atravessou mares, territórios e épocas, saída das ágoras gregas e chegada ao Parlamento britânico, ao Capitólio americano e a nosso Congresso Nacional.

Ainda é boa a hora para nosso presidente Lula aprender a lição que o português deu pela boca da atriz grega num texto falado em inglês. O conceito de democracia é garantia de sobrevivência da raça humana e transcende eras, territórios e culturas. Infelizmente, contudo, como a civilização, protagonista da fita em questão, o espírito democrático é difícil de ser incorporado e facílimo de ser despejado nos esgotos de sangue da História. O Brasil ainda conta com o presidente para garantir que isso não ocorrerá novamente conosco. Mas ele deveria pôr esta missão acima de ideologias, idiossincrasias e até dos mui legítimos interesses comerciais nacionais.

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