JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator, que acaba de obter o Prêmio "Senador José Ermírio de Moraes", da ABL (clique no título da obra para ler a fortuna crítica).

Coluna de 11 /08

Por quem chora José Dirceu

    O “passado de glórias” do deputado do PT não o torna inimputável

É dada como se fossem favas contadas a contribuição histórica dada pelo deputado José Dirceu (PT-SP) para a democratização do Brasil. E essa contribuição, tida como líquida e certa e nunca negada por seus adversários dentro e fora do PT e do governo, tem sido usada por ele como uma espécie de álibi para eventuais erros que venha a ter cometido na chefia da Casa Civil do governo Lula e na condução dos interesses do partido que fundou e ajudou a construir.

Só para começar a conversa, será útil, desde já, esclarecer que a eventual participação em feitos históricos, por mais altos valores que estes tenham, não podem servir de anistia prévia para ninguém. O verdadeiro herói da pátria nunca será alguém capaz de se sacrificar durante um determinado período de sua vida para depois se sentir autorizado a se locupletar, errando e insistindo no erro, como se quisesse cobrar da sociedade uma espécie de pagamento. Ao contrário: cada vez que Sua Excelência recorre ao argumento de seus feitos históricos, usando aqui uma linguagem de fácil entendimento para quem andou recorrendo aos serviços de Delúbio Soares e Marcos Valério Fernandes de Souza, faz um saque na conta do tal “passado de glórias” sem depositar o equivalente para compensar eventuais rombos imprevistos no saldo da credibilidade perdida.

É também passível de controvérsia a versão de que o passado do ex-poderosíssimo comissário do governo petista seja tão glorioso assim. A luta armada contra a ditadura, denunciada como oportunismo pequeno-burguês pelos velhos comunistas, pode ter sido empreendida por jovens idealistas contra uma ditadura cruel e antipopular (embora nem sempre impopular), como pretendem os historiadores simpáticos à esquerda. Mas não eram apenas ideais igualitários que acionavam o gatilho das metralhadoras dos militantes que se opuseram à tirania: havia entre eles desde criminosos vocacionais a meros oportunistas políticos. José Dirceu tornou-se um líder estudantil importante depois que arrastou uma massa em protesto empunhando a camisa ensangüentada de um colega assassinado pela repressão. E andou passando informações a uma colega infiltrada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, a célebre Maçã Dourada, em troca de um flerte cuja relevância estratégica para a revolução é bastante duvidosa.

De fato, freqüentou os brutais porões da ditadura, coincidentemente na época em que historiadores insuspeitos situam o embrião de organizações do crime organizado, caso do Comando Vermelho no Rio de Janeiro, mercê da estupidez dos carcereiros que misturaram delinqüentes comuns com prisioneiros políticos. Deles saiu com glória, trocado pelo embaixador Charles Elbrick e se abrigou em Cuba, onde, conforme ele próprio não faz segredo, teve aulas de inteligência, ou seja, espionagem. Ainda que os espiões cubanos não tenham propriamente a reputação dos membros de organizações como Odessa ou Mossad, é meio difícil de vislumbrar que contribuição significativa poderia esse aprendizado e a prática das lições darem para a construção da democracia brasileira depois da queda da ditadura militar. Colaboração menos duvidosa deram a resistência civil de partidos políticos aceitos pela ditadura, como o MDB, e líderes operários que enfrentaram a lei autoritária da greve, caso do então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, Luiz Inácio da Silva, o Lula. Em seu favor ainda, é hábito dos cronistas esquecerem com facilidade a evidência de que a esquerda armada não se propunha a substituir o regime autoritário tecnocrático-militar de direita então vigente por uma democracia dita liberal burguesa, mas sim pela “ditadura do proletariado”, aleijão teórico apensado por Vladimir Ilitch Lenine Ulianov ao socialismo científico de Karl Marx.

Enquanto durou o período de clandestinidade pós-Cuba, Dirceu viveu pacatamente no interior do Paraná, onde constituiu família e treinou seu sangue frio escondendo da mulher com quem compartilhava o tálamo e de cuja família geria um estabelecimento comercial e do filho resultante da união sua verdadeira identidade. Quando esta foi, afinal, revelada por telejornais no horário nobre, recuperou a velha identidade e retomou a carreira política, dedicando-se à costura política da antiga esquerda armada no PT. Por mais méritos que tenham os petistas da era “pré-delubiana” na construção da democracia, estes não chegam a caracterizar um heroísmo assim tão óbvio. A não ser que se considere heróica a capacidade de resistir à exposição dos fatos, contra-argumentando apenas com frases incisivas, por ele demonstrada no enfrentamento das denúncias contra sua atividade no governo feitas pelo ex-aliado Roberto Jefferson. Para quem não revelou a própria identidade à mulher e ao filho ao longo de nove anos, contudo, talvez esta não tenha sido uma prova tão notória de estoicismo e valor pessoal.

O José Dirceu que tenta salvar o mandato (e a face para seu meio milhão de eleitores) atrás das artimanhas de correligionários que comprometem a própria reputação para evitar que deponha nas CPIs do Congresso e dos argumentos falaciosos do presidente da Câmara, Severino Cavalcanti (PP-PE), para não ser processado no Conselho de Ética só se emociona para valer quando é abraçado pelo ídolo de sempre. E este não é o tosco retirante que foi até pouco seu chefe, ao qual faz juras de amor, mas o tiranete boçal e cruel que aterroriza uma pequena ilha falida no Caribe a cujos afagos corresponde com emocionado e copioso pranto sobre a lapela do dólmã.

 

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