JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator, que acaba de obter o Prêmio "Senador José Ermírio de Moraes", da ABL (clique no título da obra para ler a fortuna crítica).
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Coluna de 22/09

Modelos e espelhos para Lula se mirar

                  Getúlio, JK e Bolívar não são exemplos tão bons a imitar no Brasil de hoje em dia

O primeiro antecessor a que recorreu o presidente Luiz Inácio Lula da Silva como modelo a imitar foi Getúlio Vargas. Por óbvias que parecessem, na superfície, as conexões, contudo, esta idéia não vingou. Ao contrário do atual presidente, egresso da miséria do sertão nordestino, o antigo “pai dos pobres” amarrou seu cavalo na capital federal e geriu o País com manha, vendo para onde o vento soprava e se deixando levar por ele. Administrando o medo provocado por comunistas e fascistas, decretou a própria ditadura, flertou com o nazifascismo e terminou noivando com os americanos. Mas sucumbiu à avalanche democrática que soterrou a moda totalitária européia e depois voltou ao poder, adaptando-se ao figurino democrático da Constituição liberal de 1946. Suicida vocacional, atirou no próprio peito ao naufragar num “mar de lama”.

Getúlio fundou o Estado brasileiro, tal como o conhecemos. Até a Revolução de 1930, da qual foi o líder civil, o poder era exercido por chefes regionais, cujo mando, no Império e na República Velha, se enquadrou ao guante e à astúcia getulistas. A cidadania, vítima da ação incompetente, voraz e estróina da máquina pública por ele instalada para fazer esse Estado funcionar, não deveria ter muita saudade do baixinho habilidoso que a comandou por mais tempo. Mas, se patrícios letrados se encantam pelo charme populista do estancieiro de São Borja, não é de estranhar que um aluno relapso de História como Lula se sinta tentado a pendurar o retrato do velho outra vez na parede.

Mas, sem vocação nenhuma para rompantes de coragem pessoal, do gênero “sair da vida para entrar na História”, este preferiu apelar para exemplo mais recente e mais promissor como argumento eleiçoeiro — o de Juscelino Kubitschek de Oliveira. Só que Lula se enganou redondamente ao invocar a paciência do antecessor, cuja pressa se denunciava no slogan por ele escolhido para o governo: “50 anos em 5”. E, pelo menos, foi grato ao administrador que implantou a indústria automobilística no Brasil nos anos 1950. Pois, 20 anos depois, ele teve a oportunidade de se aproveitar muito bem dessa circunstância, lançando-se nacionalmente como líder da classe emergente dos operários fabris, comandando greves de reivindicações salariais que o patronato não tinha dificuldade de engolir, uma vez que, garantidas pela proibição de importação, as fábricas podiam repassar aos consumidores indefesos os aumentos salariais exigidos pelos grevistas. Por outro lado, ele ajudou a escrever a História do Brasil ao desmoralizar a autoridade da ditadura militar, fazendo letra morta da legislação trabalhista do Estado Novo, cujos pilares fundamentais ainda continuam de pé.

Em defesa de Lula também é possível lembrar que não foi ele o único a cair na lábia de JK, intacta até hoje. O ilustrado professor Fernando Henrique Cardoso também andou recorrendo ao mito do sedutor filho de professora primária, de família pobre, o modesto telegrafista que se tornou médico e foi prefeito de Belo Horizonte, governador de Minas e presidente da República, para conquistar eleitores. Ambos — o ex-presidente e o atual — gostariam de se banhar pelo menos um pouquinho do encanto do antecessor que simboliza a saudade daqueles bons tempos.

JK, que votou em Castello Branco na primeira eleição indireta para a Presidência, ajudando a legitimar o regime militar, que o cassaria, foi mais beneficiário que responsável pelos ditos “anos dourados” nos quais o Brasil ganhou a Copa do Mundo de futebol na Suécia, Maria Ester Bueno brilhou em Wimbledon, Eder Jofre foi campeão mundial de boxe e nosso time de basquete masculino foi campeão. O Brasil charmoso, cult e inteligente do Cinema Novo e da Bossa Nova, de Glauber Rocha e Tom Jobim, relembrado no filme Coisa mais linda!, em cartaz, não foi obra de Juscelino. Obra deste, sim, foi Brasília, cuja construção dilapidou a poupança nacional, arrombou a Previdência Social, tornou inevitável a inflação crônica e entregou a “Cidade maravilhosa” de mão beijada a bicheiros, populistas de subúrbio e traficantes de entorpecentes.

Brasília, a “utopia modernista”, dissecada em livro pelo sociólogo americano James Holstein, custou os olhos da cara e a honra da Nação sem nunca ter sido necessária, e muito menos prioritária. Para que um país com dezenas de milhões de miseráveis demandando emprego, saúde e educação se deu ao luxo de construir uma capital que só serviu para ampliar o fosso abissal existente entre o Estado e a Nação? JK era simpático, pé-de-valsa e tolerante. E daí? De nada adiantou a “banda de música” da UDN oposicionista denunciar as fortunas que se fizeram no gasto desproporcional às escassas possibilidades da Nação, enquanto Sua Excelência brincava de faraó.

Após renegar os exemplos de Getúlio, Jânio e Jango, nosso presidente resolveu buscar alento em Simon Bolívar, ídolo e patrício de seu amigo Hugo Chávez. Como mostrou outro admirador de Fidel Castro, Gabriel García Márquez, no romance O general em seu labirinto, este gênio militar foi incapaz de entender a realidade política interna das ex-colônias que ajudou a libertar do jugo da Coroa espanhola, deixando-as entregues ao atraso inexorável do caudilhismo. Melhor faria Lula se lembrasse a responsabilidade fiscal de Campos Salles ou de Castello Branco!

Antes de, nesta busca de um espelho em que se possa mirar na América do Sul do século 19, o presidente se deparar com Dom Pedro II, talvez seja útil lembrar-lhe que este era chamado de Pedro Banana por culpa de sua tendência para contornar crises ao invés de enfrentá-las. Era o que faltava!

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