JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator, que acaba de obter o Prêmio "Senador José Ermírio de Moraes", da ABL (clique no título da obra para ler a fortuna crítica).
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Coluna de 27/10

O panorama visto de cima do tapume

                 Não há nexo algum entre os discursos de Lula e do PT e a realidade dos fatos

Um dia destes, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva criticou, na Fiesp, o “denuncismo sem conseqüências” que assola o País. Sem conseqüências como, cara-pálida? Sua Excelência mesmo teve de abrir mão de seu “fac totum”, o gerentão e articulador-mor de seu governo, José Dirceu, atualmente réu em processo de quebra de decoro no Conselho de Ética da Câmara. E mais: o presidente dessa Câmara, Severino Cavalcanti (PP-PE), segundo nome na eventual substituição do chefe do governo, teve de renunciar ao mandato, acusado de cobrar propina do concessionário de restaurantes da Casa; o presidente nacional afastado do PTB, Roberto Jefferson (RJ), foi cassado; e o ainda presidente nacional do PL, Valdemar Costa Neto, pulou fora do barco antes de vê-lo afundar. O líder da oposição no Senado, Artur Virgílio (PSDB-AM), relacionou mais de cem vítimas do “denuncismo sem conseqüências”, execrado por Lula.

Depois de envergar um quimono para subir num tapume, o chefe supremo do governo federal reuniu a bancada do PT, seu partido. À boca pequena, dizia-se que apelara para que 7 dos 13 “cassáveis” renunciassem para amainar a crise e, em compensação, teriam garantida legenda para tentar reeleição. O apelo foi negado, nunca por ele próprio, que, aliás, aproveitou a oportunosa ensancha para, com magnanimidade e absolutismo imperiais, perdoar os nobres companheiros que, segundo ele, erraram, mas não se corromperam. Acreditar na eficiência da renúncia (na prática, confissão de culpa) como solvente da indignação da sociedade contra seus representantes suspeitos de corrupção é apostar tudo na memória curta coletiva e insultar a inteligência da população. Ser condescendente com parlamentares acusados de vender idéias e posições por saques no “valerioduto” é muito mais grave, pois pressupõe a convicção da própria natureza divina, adicionando à condição de infalível (que nunca erra) própria de único e supremo juiz do erro alheio. É como se, na condição de papa da fé petista, lhe fosse facultado decretar: “Nunca erro, portanto, posso perdoar os erros de vocês.”

Autorizado por esse cânone de pontífice máximo, o novo presidente nacional do PT, deputado Ricardo Berzoini (SP), cuja habilidade já fora demonstrada no Ministério da Previdência, ao impor aos idosos provarem em filas quilométricas que existiam, tipificou o “erro” dos companheiros – receber e repassar “recursos não contabilizados”, ou seja, caixa 2, chamada pelo ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, de “coisa de bandido” – como “ilegalidade eleitoral”, por sinal, “algo muito comum na política brasileira”. Isso depois de a Polícia Federal ter fornecido à CPI dos Correios documentação suficiente para provar que o pretexto usado para rebaixar o crime de corrupção para o de sonegação fiscal não passou de uma farsa absurda. A deputada Denise Frossard (PPS-RJ), com a experiência de quem mandou para trás das grades os delinqüentes do jogo do bicho no Rio, já advertiu que caixa 2 é um expediente de burla do Fisco por empresas e nada tem que ver com o que o PT confessou e atribuiu aos adversários. Nada disso, contudo, fez Berzoini, autor da curiosa distinção entre “caixa 2 do Bem” e “caixa 2 do Mal”, arredar de sua posição “contra o linchamento de lideranças” e de sua recusa em agir “como carrasco, aceitando a discriminação contra o PT como dado da realidade”.

Um inequívoco dado de tal realidade foi o surto de febre aftosa em Eldorado (MS), que, além de dar um prejuízo bilionário ao País, compromete a posição de destaque assumida pela pecuária brasileira de líder mundial na venda de carne bovina. A culpa, segundo garantiu Lula em Portugal, cabe aos donos de rebanho que não vacinam seu gado. O truísmo, de natureza acaciana (apropriadamente pronunciado perto de Póvoa do Varzim, cidade de Eça de Queiroz, criador do Conselheiro Acácio, tornado símbolo literário da reiteração do óbvio), se insere mais uma vez neste quadro de negação da própria responsabilidade e sua transferência para algum incauto à vista. Pois, diante da evidência de que as verbas para a defesa sanitária animal foram negligenciadas (contingenciadas, como se diz no jargão burocrático), a reação do em última instância responsável pela lambança foi apenas e simplesmente negar. “É uma coisa impensável, num rebanho de 582 cabeças (onde houve o foco da doença), você imaginar que uma coisa que ia custar R$ 800 poderia ter sido causada por falta de dinheiro”, disse, com sua lógica, de fazer corar qualquer estátua de Aristóteles, omitindo, não se sabe se por não saber ou se por ter certeza de que ninguém mais sabe, a obviedade ululante (que, no caso, muge) de que os R$ 800 que faltaram em Eldorado fazem parte dos milhões de reais que teriam de ser destinados a manter o rebanho sadio, mas foram reduzidos por absoluta falta de critério de um grupo de burocratas que corta tudo o que não seja financiamento das próprias “boquinhas”, por não terem idéia de como deveriam gastar esse dinheiro.

A falta de nexo entre os fatos e o panorama que Lula e o PT vêem de cima do tapume tem uma lógica maligna. Não lhes causa a menor mossa o prejuízo do agronegócio, pilar hígido da frágil economia nacional, pois bois não votam e seus donos não são em número suficiente para ameaçar seu projeto de reeleição. Importa, de fato, é nunca faltar dinheiro em programas assistencialistas como o Bolsa-Família, que hoje beneficia 7 milhões de famílias e pertinho da eleição, daqui a um ano, atenderá a 12 milhões. O total dessas famílias, cujos votos estão sendo comprados com dinheiro tomado do contribuinte, não bastará para garantir sua permanência no poder. Mas já representa um bom lastro, que explica a quase incolumidade de sua imagem, apesar da crise: efeito Teflon também se compra.

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