"NOZARTE EM BLOCOS", POR RICARDO ALFAYA

Ricardo Alfaya, Rio de Janeiro, 08.08.1953, formado em Direito e Jornalismo, é poeta, contista, cronista, articulista, ensaísta e editor do
Nozarte Informativo Impresso e Eletrônico. Blogue: http://nozarte.blig.ig.com.br

Coluna de 21/10
(próxima coluna: 21/11)

LATIDOS DE CÃES E BESOUROS FALANTES

1) LATIDO DE PRIMAVERA – Quando esta coluna for ao ar, já adiantada estará a primavera. Porém, ela foi escrita bem antes, mais precisamente no dia oficial em que começa. Não é a flor, mas a folhinha que a anuncia para mim. Não a verde, mas a virtual, a folhinha do computador. Lá está, na ponta do “mouse”: terça-feira, 21 de setembro de 2004. Tento assim, mais uma vez, embora sabendo em debalde, aspirar algum perfume, sentir ou ouvir alguma coisa boa, aromática, que dê um “clima”. Enquanto empenho os sentidos, ouço o latido implacável do cão do vizinho. Filho de incompreensível cruzamento, trata-se de vira-lata pequeno, com voz de trovão. Não me recuperara ainda inteiramente do choque, quando descubro que “Viver é assustador!”

2) O SUSTO DE VIVER – Sim, ali estão, entre as publicações espalhadas sobre a mesa para este escrito, dizeres de Clarice Lispector selecionados e ilustrados por Lupin, em forma de história em quadrinhos. O título geral: “Viver é assustador”. Quatro rostos, a evocar a escritora, aparecem. Cada qual numa janela, em quadrinho, acompanhado de balão com palavras da autora. São igualmente quatro textos, três deles a pôr em cheque a existência, o sentido da vida. A matéria foi publicada na seção “Rede Alternativa de Poesia”, derradeira página do número 125, agosto de 2004, de “O Capital”, de Ilma Fontes, Aracaju-SE.

3) UM CÃO LATINDO NUMA CASA VAZIA – Os três primeiros quadrinhos trazem pensamentos fortíssimos, amenizados, até certo ponto, pelo último. O primeiro, apesar disso, contém humor: “Eu mal entrei em mim e assustada já quero sair.” O segundo é terrível: “Fico alegre quando sinto fome... só para ter uma finalidade imediata. Quando sinto fome, tenho uma razão para viver.” Porém, o quarto pensamento fecha de maneira positiva, sugerindo uma idéia de luz e renascimento: “Está amanhecendo. Ouço os galos. Estou amanhecendo.” Todavia, e com o perdão do leitor pelo trocadilho incidental, o que me “mordeu” foi o de número três: “Minha vida é um grande desastre. É um desencontro cruel, é uma casa vazia. Mas tem um cachorro dentro latindo.”

4) AMANHEÇO

Amanheço
Amanheço
Amanheço
Amanheço
Amanheço
Amanheço
Amanheço
Amanheço
Amanheço
Amanheço
Amanheço

Amanhã eu começo isso.
Ela gritou de sua janela aberta
que mais parece
um precipício

(Elaine Pauvolid, em “Brindei com mão serenata o sonho que tive durante minha noite-estrela”, de “Rios, coletânea de poemas”, Rio de Janeiro, Ibis Libris, org. Márcio Catunda, 2003, p. 13).

5) QUAIS AS ALTERNATIVAS? – A Rede Alternativa ainda existe e resiste. Por certo modificada, informatizada, um tanto diluída ideologicamente nestes tempos globalmente confusos e ilusórios. Mas a dor que move o coração dos poetas é semelhante à dor da paixão. E por isso dói e sangra desmedidamente, desviando o pensamento um tanto em direção à insanidade. “Poesia Insana”, diz o título do site de Greta Benitez, uma das mais expressivas da nova geração de poetas.

6) O POETA É UM SPAMTO – O poeta às vezes tenta vestir-se e à sua poesia com terno e gravata. Raramente isso dá completamente certo. E quanto melhor for o poeta, mais dificilmente. Já se disse que um poeta não se faz apenas com versos. Embora isso represente pensamento típico de fases ideologicamente mais questionadoras do que a vivida atualmente. Verdade que aquele considerado nosso maior poeta vestiu terno e gravata muito bem, até com certa elegância. Já não se pode dizer o mesmo de Bandeira, que sempre pareceu pouco à vontade no traje, e de quem já li, inclusive, que costumava ficar em casa em roupas sumárias ou até completamente desprovido delas. A roupa devia incomodá-lo, como aliás incomoda a mim, que consegui o prodígio de viver 51 anos sem nunca ter vestido um terno. Claro que isso tem seu preço. Tudo tem. Porém, seja lá como for, com terno ou sem terno, com ternura ou sem, o poeta é um sem-lugar. “Mosca da Sopa” (Raul Seixas), “cigarra cantante” (La Fontaine) ou “Besouro Falante” (P.J. Ribeiro), o poeta tem em comum com o inseto o ser uma fragilidade que azucrina. É um Spam. É um Spamto.

7) ONDE ESTÃO OS POETAS?

O mundo vai morrer latindo
como um cão raivoso
desdentado.
A manchete do dia à noite:
“ONDE ESTÃO OS POETAS?”
Ninguém sabe.
Ninguém nunca soube de nada.
Estão todos podres.
Desconhecidos.

(P.J. Ribeiro, em “Besouros Falantes”, Cataguases, Totem Edições, 2003, p. 46).

8) BESOUROS FALANTES – O livro “Besouros Falantes”, de P.J. Ribeiro, é uma obra que traz vários sinais que evocam o melhor do movimento literário alternativo. Resulta da integração da era da informática de hoje com a ideologia e o sentimento questionadores e libertários das décadas em que o alternativismo impresso se encontrava no auge. A edição no formato livro de bolso-revista, 10 cm x 15 cm, páginas grampeadas, com a capa em preto e branco, sem dúvida colabora para esse efeito. Entretanto, é o conteúdo mesmo da obra o que mais o sublinha. Afinal, como esclarece o prefaciador Joaquim Branco: “A maioria dos textos deste livro de P.J. Ribeiro foi escrita na década de 1960, alguns na de 70, poucos na virada do século. Mas todos trazem indelevelmente inscrita a marca da aventura com a linguagem, que faz do homem não o melhor mas o mais inquieto bicho da natureza.” Por outro lado, se é portador de sinais da época em que foi concebido, o livro em sua totalidade revela-se plenamente atual, como no caso do poema acima transcrito.

9) FRAGILIDADE QUE ESPUMA – Vimos que cachorros, besouros, homens e certamente outras frágeis espécies da fauna e da flora podem servir de metáfora ao poeta. Depende. Ainda no que se refere ao cão, o poeta compartilha com este animal, além da capacidade de produzir latido inquieto e inquietante, o dom de transmutar a raiva em espuma.

10) RETOQUES FINAIS – Claro que há exceções, mas essencialmente poetas são lidos pelos seus iguais. O fato, na maior parte dos casos, não os impede de escrever e inclusive de publicar, se oportunidade houver para tanto. Quem os vai ler ou até se alguém os vai ler, torna-se relativamente secundário. O saber-se lido tem aí a mesma função que a fome para Clarice, no sentido de justificar-lhe a vida. Isto é, quando nos sabemos lidos ou quando imaginamos que o somos, temos uma “justificativa” plausível, imediata e racional para continuarmos a alimentar essa paixão insana. Assim seja.

Rio de Janeiro, 21 de setembro de 2004.

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