NO NATAL

             No oco de dentro, tudo morto e escuro. Ele abriu o armário, pegou o guarda-chuva. Olhou-se no espelho, achou-se  envelhecido, cansado, os cabelos grisalhos não ajudavam a face pálida. Mas dirigiu-se para a porta da rua, resoluto. Não, não sabia aonde iria, estava apenas indo para a rua, apesar da chuva.
             Na calçada. Ele estava na calçada debaixo da marquise. Chovia. Ele tinha de ir a um bar, ou a um restaurante qualquer. Já não agüentava ficar em casa, sozinho. Tinha preparado o seu Natal para passar sozinho em casa, a sua ceia. Intocada. Nos dias anteriores se organizara, comprou um pouco de peru, castanhas, um bolo, coisas assim. Colocou a melhor toalha na mesa, arrumou tudo, até com certa beleza e elegância, graças às taças de cristal, herança da família. Bacará. Mas não. Não agüentou ficar ali, vendo a solidão no vídeo da TV. Resolveu partir para a conquista da rua, mas já era tarde, tudo estava parado, morto. A cidade dormia em silêncio. Ninguém mais andava de noite, naquela região perigosa, ali. Por isso, ele estava parado, olhava a pesada chuva, não se animava a atravessar a rua, debaixo da marquise. Que fazer?
             Lembrou-se da Missa do Galo que já devia ter acontecido: Que horas são? – Não trouxera relógio.
             Foi quando na esquina despontou um táxi, era sua sorte que mudava. Faz um sinal, aflito. O taxista, mal-humorado, dobrou, veio. Parou, ele se jogou lá dentro, como dentro da barca da salvação.
            – Para onde?, perguntou o taxista.
            Ele não soube responder.
            Rodaram pelo Centro sem rumo, à procura de um lugar onde ele pudesse passar a noite de natal, o restante da noite, mas tudo fechado. Rumaram para a Zona Sul contudo, ou já era muito tarde, ou não abriram, ou já tinham fechado os bares e restaurantes. Finalmente, no final do Leblon, um pequeno lugar, muito conhecido seu, ainda aberto.
            A casa cheia, ruídos e de bêbados. Ótimo, pensou, já não estamos sós. O primeiro uísque bebido em pé, no balcão, meia hora depois vagava a mesa. O segundo e terceiro uísque bebeu entre conhecidas lembranças tristes e vagas que assaltavam, assassinas. Sim fora ali. Naquele mesmo lugar. Ele olhou e viu quando Ana lhe falara, anos atrás. Contara tudo, de chofre. Sem introdução. E dissera que já estava com o outro. "Que belo lugar, disse para si, apropriado, para passar este natal solitário!" Mas foi o único. Resolveu comemorar não sabia o quê. Depois do terceiro uísque, sentiu-se melhor, meio faminto de vida, e encomendou um peixe que ali se comia desde a época de Aninha. Mas a refeição permaneceu na mesa, ele via o dia vazio, que estava nascendo o dia, e a chuva, através da vidraça, fina, persistente. E olhava em volta à sua procura, as pessoas pareciam estranhas, as vozes cada vez mais longínquas. Cantavam. À sua volta cantavam. Por que aquilo não o contagiava?     Por que no oco de dentro tudo morto e escuro?
            E a chuva parou, o sol levantou-se, ele pediu a conta, pagou e partiu em direção à praia. Atravessou a rua, cruzou com uns homens que corriam, atléticos. O mar estava limpo, plácido, como lago. Um espelho de mar. Num canto das pedras percebeu um estranho e gordo velho, encolhido, agachado. Tocava o mar com os dedos. Era um velho gordo, olhava fixamente o mar.  A barba branca, ele olhava fixamente o mar. Mais de perto, quase a seu lado, vejo quem era. No oco de dentro tudo já não estava morto e escuro: O sol, um enorme sol, brilhava já no horizonte desperto. O velho olhava o mar. Tirava barquinhos de papel  do saco de brinquedos e os punha sobre a água. Os barquinhos partiam, em direção ao outro lado do mundo.

« Voltar