Coluna de Rogel Samuel 
Rogel Samuel é Doutor em Letras e Professor aposentado da Pós da UFRJ. poeta, romancista, cronista, webjornalista.
Site pessoal: http://www.geocities.com/rogelsamuel

Nº 71 - 1 ª quinzena novembro
(próxima coluna: 25/11)


O BRASIL É BARROCO: DEUS ME GUARDE!

Maneirismo e barroco são diferentes. O barroco é veraz, sensorial, naturalista, físico. O maneirismo se preocupa com questões filosóficas, inquietação espiritual. O barroco é popular, satírico; o maneirismo é cortês.

Mas os estudiosos divergem.

Heinrich Wolfflin, um dos primeiros a estudar o barroco, diz que nele há "a passagem do linear para o pictórico, para a cor" nas artes plásticas; "a passagem da visão da superfície para a profundidade"; da forma aberta para a fechada, da estabilidade renascentista para a instabilidade; da claridade absoluta para a relativa obscuridade ("Princípios fundamentais da história da arte", 1915).

A palavra barroco deriva da pérola irregular da Barokia, e passou aí a significar desigual, bizarro, irregular. Maneirismo vem de "maniera", palavra italiana para estilo.

O classicismo era a manifestação da ordem, da harmonia, a serenidade, a regularidade, a sobriedade, o sublime contido e elegante - aqui não há conflito. No maneirismo a distorção, a ruptura da normalidade, o contraste, o monstruoso, a crise do humanismo, a guerra, como revela a invasão de Roma, a Reforma e Contra-reforma, o pessimismo - aqui aparece a corrosão dos fundamentos morais, a duplicidade moral, o homem como ser corruptível, a luta entre os desejos do corpo e os do espírito, a insegurança, a contradição. No maneirismo a sabedoria humana é vã, prevalecem as dúvidas e especulações torturantes, há uma queda da "lei universal", o mundo fica um caos regido pelo acaso, pela boa ou má sorte. Nas sociedades e na política só egoísmo e ambição, como em Shakespeare. No mundo individual há solidão e tristeza, instabilidade emocional, desespero, revolta, neurose, terrores, como de certas figuras de Miguel Ângelo. Mesmo a religiosidade mostra a insegurança, cheia de antíteses, metáforas contrastantes, inseguras, como no poema de Gregório de Matos "Buscando a Cristo" (Obras de. Rio de Janeiro, Ed. Academia Brasileira de Letras, 1923-30, v. 1, p. 93):

A vós correndo vou, braços sagrados,
Nessa cruz sacrossanta descobertos,
Que, para receber-me, estais abertos,
E, por não castigar-me, estais cravados.
A vós, divinos olhos, eclipsados
De tanto sangue e lágrimas abertos,
Pois, para perdoar-me, estais despertos,
E, por não condenar-me, estais fechados.
A vós, pregados pés, por não deixar-me,
A vós, sangue vertido, para ungir-me,
A vós, cabeça baixa, pra chamar-me.
A vós, lado patente, quero unir-me,
A vós, cravos preciosos, quero atar-me,
Para ficar unido, atado e firme.

A diferença entre Maneirismo e Barroco nunca foi clara, mas se pode dizer que o barroco é decorativo, superfície - enquanto o maneirismo é introspectivo, ainda que haja temas comuns aos dois, como o gosto do contraste, os desenganos, o transitório, o sofisticado conceito, a complicação e prestidigitação verbal. Mas nos dois tudo isso aparece diferente: o barroco é espetáculo, o maneirismo é visão interior.

Como disse o barroco é popular, satírico, irônico e crítico, como o que escreveu o poeta Gregório de Matos:

Destes que campam no mundo
em ter engenho profundo
E, entre gabos dos amigos,
Os vemos em papafigos
Sem tempestade, nem vento:

Anjo Bento!

De quem com letras secretas
Tudo o que alcança é por tretas,
Baculejando sem pejo,
Por matar o seu desejo,
Desde a manhã té à tarde:

Deus me guarde!

Do que passeia farfante,
Muito prezado de amante,
Por fora luvas, galões,
Insígnias, armas, bastões,
Por dentro pão bolorento:

Anjo Bento!

Destes beatos fingidos,
Cabisbaixos, encolhidos,
Por dentro fatais maganos,
Sendo nas caras uns Janos:
Que fazem do vício alarde:

Deus me guarde!

Que vejamos teso andar
Quem mal sabe engatinhar,
Muito inteiro e presumido,
Ficando o outro abatido
Com maior merecimento:

Anjo Bento!

Destes avaros mofinos,
Que põem na mesa pepinos,
De toda a iguaria isenta,
Com seu limão e pimenta,
Porque diz que o queima e arde:

Deus me guarde!

Voltar