Simone Salles

Simone, Si, é jornalista e escritora, trabalhou em jornais e revistas da grande imprensa, como Jornal do Brasil, Folha de São Paulo e Correio Braziliense. Morou em Brasília 14 anos, onde também foi secretária-adjunta de Comunicação Social do Governo Cristóvam Buarque.

Coluna de 26/1
(próxima coluna: 6/2)

Impontualidade amorosa 

Padeço de um mal, aparentemente, incurável. Sofro de impontualidade amorosa. Percebi isso na adolescência, quando olhei pela primeira vez, com olhos de cobiça, um ser do outro sexo. Mais vulgarmente denominado como homem. Sempre cheguei antes ou depois da hora na vida dos homens por quem me interessei. Jamais na hora certa, precisa. Aquele instante em que ele está disposto e disponível. Pois não basta estar disponível. É  condição sine qua non que também esteja disposto. Do contrário, seremos sempre mais uma na longa fila, que está em permanente movimento.

Também nunca tive a sorte de pegar um homem zero quilômetro. Assim, com cheirinho de novo, feito carro saído de fábrica. Calma. Não me refiro às experiências sexuais do sujeito, até porque minha vocação para o ofício de educadora é mínima. Falo do passado. Todos, absolutamente TODOS, com quem me envolvi amorosamente eram kits-completos. Ou seja: vinham com filhos, traumas de casamentos falidos,  e - claro - as indefectíveis ex-mulheres. Ex, no plural. Pois todos eram, no mínimo, de terceira mão.

Creio que é karma. Não tem outra explicação. Devo ter sido uma messalina na vida anterior -  má, perversa, arbitrária. Absolutamente infiel. Totalmente promíscua. Destituída de quaisquer sentimentos nobres em relação ao próximo. Sobretudo se esse  próximo  freqüentasse a minha cama. Por castigo, nessa encarnação, fico sempre na pista. Para  evoluir meu espírito, redimindo-me dos erros cometidos, sofro dos mesmos males que causei. Só pode. Prefiro essa, a qualquer outra exegese, mesmo que mais plausível ou razoável. Se há culpa, que seja na vida passada. Nessa, sem chance. 

Investi centenas e centenas de horas - pior, de Reais - em divãs de psicanalistas para livrar-me de complexos e outras neuras. Resquícios, óbvio, da minha educação judaico-cristã. Não vou agora desperdiçar tanto tempo e dinheiro, defenestrando tudo isso do oitavo andar. Em razão dessa minha longa e profícua experiência como analisanda, também rechaço conclusões freudianas, lacanianas, younguianas (?!) e outros ianas sobre o assunto. A minha impontualidade amorosa, posso garantir, não é fruto de traumas da infância, fixação paterno, complexo de rejeição ou outro recalque afim . Muito menos desvio amoroso-masoquista.  

Também não pode ser, tão somente, uma mera coincidência. Porque basta que eu deseje um homem para saber,  por antecipação, sua folha corrida amorosa e matrimonial. É tiro e queda. Não erro nunca. Como não sou perfeita, por vezes falho no número de ex-mulheres ou da prole. Mas só isso. Ruim mesmo é quando também demonstram algum desejo por mim e se aproximam. Olho para o homem, sorrio por fora e lamento por dentro. Pois me vem, de imediato, a maldita sensação de déjà vu.  Sei o script todinho, de cor e salteado. É sempre assim - com ligeiras variações no roteiro, dependendo apenas do maior ou menor percentual de criatividade do indivíduo.

Primeiro, pergunta o nome (ou somos apresentados por amigos comuns). Em seguida, rola um clima. Conversamos, trocamos números de telefone e e-mail. Aí, ele procura novamente. Eu me encanto. Aparentemente,  nos encantamos. Vemo-nos novamente. Mais gentil e cortês que das vezes anteriores, o clima esquenta, pegamos fogo, sexo quase perfeito. Maravilha das maravilhas, não? Seria. Não fosse o fato de que, alguns dias depois, ele liga para dar as preciosas e já manjadíssimas justificativas. "Olha faz pouco que me separei, preciso me refazer emocionalmente"; ou "quero você, mas preciso de liberdade" e, de todas, a mais deplorável  (sempre a título de demonstração de caráter ilibado): "Não quero enganar você; vamos continuar, mas sem compromisso". Ouço candidamente e penso, porque não perco meu tempo falando: " mais um tremendo babaca na minha longa lista de babacas".

Miguel Paiva descreveu  fantasticamente bem  - e com um conhecimento de causa mais que curioso, sendo ele homem; ou quem sabe, justamente por isso - esse tipo de situação. Num dos cartoons da Radical Chic, a personagem passa por situação semelhante num bar e, antes mesmo que o sujeito abra a boca, ela diz o que eu resumi acima. E termina com uma frase lapidar: "Ainda quer saber meu nome?". OK, não sou nenhuma Sharon Stone em seus dias de glória e explícitas cruzadas de pernas para desespero do canastrão Michael Douglas.

Mas também não pertenço à tribo da Zezé Macedo - justiça seja feita, essa soube sempre, com muita inteligência, tirar o melhor do pior. Sou uma mulher bem resolvida (sentido amplo, geral e irrestrito; deu pra entender?) e interessante. Tenho bem mais que dois neurônios, todos em perfeito funcionamento. Não sou a Barsa Enciclopédia, mas guardo em mim um considerável acervo de informação e cultura. Portanto, a babaca não sou eu. São eles.

E, apesar de agora ser eu  o kit-completo da história, não telefono para dizeres asneiras em forma de explicações ou em nome do meu caráter íntegro. Desde que li a frase do Miguel-Radical, toda vez que um homem se aproxima de mim, tenho vontade de ter a mesmíssima atitude da personagem e finalizar o monólogo com essa frase brilhante. Mas não faço. Não sei, ao certo, a razão. Pode ser por uma espécie de piedade. Ou, talvez, me reste algum vestígio de esperança de esbarrar, em algum momento da vida, com um homem que tenha escapado da  babaquice generalizada do reino dos machos sexualmente ativos.

De qualquer maneira, não será essa a razão de voltar aos já conhecidos consultórios dos psis. Dei baixa a todos, com honra ao mérito e tudo mais. Sei não, mas acho que vou procurar o Miguel Paiva e tirar aquela história a limpo. Como pode ele ter tanto conhecimento assim sobre um sentimento tão feminino?! Espero, sinceramente, não me interessar por ele e que ele não se por mim. Espero, ainda, por segurança, que esteja casado, muito bem casado. Pois esse é um dos poucos dogmas que tenho na vida: homem casado é bem mais que um simples babaca; é uma encrenca colossal! Só assim poderei saber, com certeza, a origem de seu conhecimento sobre a alma feminina.

Mas, se por ventura estiver solteiro e eu me interessar por ele, nem precisarei procurar saber de sua vida pregressa. Pior. Se - cúmulo da falta de sorte minha - ele demonstrar interesse por mim e, dias depois, receber um infeliz telefonema dele, podem apostar. Não vou desperdiçar a oportunidade de me vingar de todos os babacas com quem esbarrei anos a fio. Antes que diga qualquer coisa além do simples alô, vou explicar docemente e com a maior cara-de-pau: "Não quero enganar você, querido; vamos continuar, mas sem compromisso".

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