Simone Salles

Simone, Si, é jornalista e escritora, trabalhou em jornais e revistas da grande imprensa, como Jornal do Brasil, Folha de São Paulo e Correio Braziliense. Morou em Brasília 14 anos, onde também foi secretária-adjunta de Comunicação Social do Governo Cristóvam Buarque.

Coluna de 6/2
(próxima coluna: 16/2)

Politicamente In correta

Tenho verdadeiro horror a tudo o que se torna regra, convenção, praxe, norma, princípio, lei.  Praticados, esses substantivos tem um único significado e objetivo: enquadrar-nos. Colocar-nos rédea e bridão. Obrigar-nos a seguir padrões, imaginados e impostos sabe-se lá por quem. Pois ignoro todos. Ando deliberadamente na contra-mão. Mania que esse povo tem de querer transformar a todos em pessoas-produto de uma linha de montagem. Com direito a embalagem caprichada e certificado de qualidade. Falta muito pouco para que recorramos aos procons e juizados de pequenas causas celestes para queixarmo-nos de pessoas-produto mal acabados, com defeitos de fábrica ou mau funcionamento.

Francamente. Deus tem mais o que fazer. A vida, para os que seguem regras, padrões e normas divide-se em in e out. In é tudo o que é aceitável, que não difere, que não tem identidade, que não foge às convenções, que é supostamente muderno e indiscutivelmente fashion. Os que optam pelo in são pessoas-produto aparentemente sem defeitos. Falam o que é certo. Agem de forma certa. Pensam de forma certa. Vestem-se de maneira certa. Usam os termos certos e defendem as causas certas. Todos iguais, sem diferenças.  Tédio! Puro tédio! Conheço nada mais chato do que gente certa. Os certinhos são destituídos de atrativos, de singularidades e de defeitos. E gente sem defeito é um porre! Pois que é, justamente, a soma dessas características que transforma seres humanos em indivíduos. Únicos. Inconfundíveis.

Admito. Não sei quem mais me irrita: se os certinhos defensores de causas certinhas ou os certinhos que decoraram o dicionário dos certinhos. Ambos, grupos de humanos lamentáveis. Sobretudo porque não basta, para eles, serem certinhos. Precisam necessariamente ostentar esse  atributo . Pior, procuram convencer incautos a ingressar em suas falanges. Aí, caríssimos, o caldo entorna. Haja paciência e ovários, no meu caso, para aturar tanta mediocridade. Justiça seja feita. Um mérito, mesmo que discutível, eles têm. É simplesmente inacreditável como um único certinho é capaz de guardar em si tanto besteirol e mesmice. Ausência de originalidade baixou neles e se estabeleceu. De mala e cuia.  

Para o grupo dos certinhos defensores de causas certinhas ainda há uma desculpa, mesmo que rota, a seu favor. Eles lutam por alguma coisa digna. Sejam Baleias, Mata Atlântica, Tartarugas, Floresta Amazônica, Micos-Leões Dourados. Ou a Árvore da Esquina, que a companhia de energia decidiu derrubar em prol da manutenção de seus fios. Sempre em letras maiúsculas, fruto da importância do tema. Tudo, para esse grupo de chatos, é grandioso. Não me surpreenderá em nada se surgir, agora que a dengue está supostamente sob controle, uma ong - a chatice institucionalizada - para defender o aedes aegypti. Independentemente do fato de aedes significar, etimologicamente, desagradável, enjoativo, nauseante e ser o pobre inseto (é de sua natureza, o coitadinho não tem culpa) transmissor de doenças fatais. Afinal, o mosquito também tem seu direito de existir e de não ser exterminado da face da Terra. Ou não?! Há que se ter um mínimo de coerência!

Das baleias às árvores da esquina, todas as causam têm a minha solidariedade quase irrestrita. As causas. Não seus defensores. Esses, a verborragia e o proselitismo impedem-me de nutrir por eles qualquer simpatia. Já comprei camisetas - custaram-me os olhos da cara; virou moda, tornou-se grife e, por isso, caríssimas - para ajudar a salvar as tartaruguinhas. Já subscrevi abaixo-assinados em defesa de árvores. Já visitei santuários ecológicos para, com o pagamento da entrada, contribuir com a preservação de espécies ameaçadas de extinção. Ensino meus filhos sobre a importância do respeito à natureza e a todos os seres, obras perfeitas do Criador. Faço, portanto, a minha parte. Cumpro com meu dever. E não torro a paciência de qualquer vivente por causa disso. É óbvio que esses chatos servem para alertar sobre o problema. Sem dúvida. Está aí o Green Peace, e suas peripécias chatérrimas , que não me deixa mentir. Mas não poderiam ser menos maçantes no dia a dia? Talvez conseguissem mais adeptos para suas causas.

Já para os chatos do vocabulário não há perdão. Nem a compaixão cristã é capaz de absolvê-los desse crime. Valendo-se de uma indagação filosófica do bardo Willian Shakespeare - "... O que significa um nome? ..." - dois chatos americanos, Henry Beard e Cristopher Cerf, certamente na falta de algo melhor para fazer, traduziram sua mediocridade num glossário ridículo. O objetivo, afirmam eles, seria o de expulsar dos idiomas o preconceito. Como se, ao substituirmos palavras, mudássemos sentimentos. Em alguns casos, esses chatos fizeram justamente o contrário do que se propuseram. Só os reafirmaram.   Ah, e como chatos conscientes de sua imensa chatice trataram de inventar uma expressão que os redimisse. Para eles, chatos são " pessoas interessantes de forma diferente ". Isso é que é advogar em causa própria! Ora, chatos são chatos, nada mais que chatos! E, pobre de nós que temos de aturá-los.

Mas como chatice é contagiante, passamos a ouvir - sempre proferidas pelas bocas dos chatos - expressões como: empresário desprovido de estabelecimento; cerebralmente prejudicado; quimicamente alterado; verticalmente comprimido; exploração da Mãe-Terra; pessoa com educação alternativa; pessoa com necessidades difíceis de satisfazer; pessoa cronicamente deficiente em questão de horário; seminário de preparação avançada; geneticamente opressor; pessoa com um tipo especial de organização capilar; suíte de custódia;  fragrância não-voluntária; carcaça de animal processada. E, pérolas das pérolas, encarceramento doméstico; estupro legalizado, prostituição oficializada. Não. Nem pensem, por segundo que seja,  que a chatice desses americanos resumiu-se nisso. Esses são apenas alguns exemplos de expressões encontradas nas três primeiras letras do glossário dos abomináveis politicamente corretos.

Agora, imagine o seguinte diálogo entre dois chatos politicamente corretos, que não se viam há algum tempo:

— Quanto tempo! A última vez que nos vimos você estava quimicamente alterada!

 — Pois é... Abandonei essa vida. Optei pela prostituição oficializada.

— Sério?!

— Verdade. Conheci um geneticamente opressor maravilhoso! 

— Já teve filhos?

— Um casal. Estão, no momento, cursando um seminário de preparação avançada.

— Está trabalhando em quê mesmo? Faz tanto tempo que não nos vemos...

— Hoje sou uma empresária destituída de estabelecimento. Dá para viver.

— Bem, preciso ir, tenho um compromisso urgente.

— É, melhor ir ... Você sempre foi uma pessoa cronicamente deficiente em questão de horários...

- Já é tarde. Não se demore na rua. Há uma pessoa com necessidades difíceis de satisfazer à solta...

Deu para entender? Não? Vou traduzir, então:

—Quanto tempo! A última vez que nos vimos você estava bêbada!

— Pois é... Abandonei essa vida. Optei pelo casamento.

— Sério?!

— Verdade. Conheci um homem maravilhoso!

— Já teve filhos?

— Um casal. Estão, no momento, nas aulas de recuperação do colégio.]

— Está trabalhando em quê, mesmo? Faz tanto tempo que não nos encontramos... 

— Hoje sou camelô. Dá para viver.

— Bem preciso ir, tenho um compromisso urgente.

— É, melhor ir... Você sempre foi um atrasado contumaz...

— Já é tarde. Não se demore na rua. Há um assassino em série à solta...

Agora, falando sério, dá para ouvir um diálogo desses, entre chatos do vocabulário, sem ter uma crise apopléctica? Sem atacar a cabeça com as mãos, mesmo sob pena de tornar-se uma pessoa com um tipo especial de organização capilar — em bom português, careca?  Ainda prefiro conviver com os cerebralmente prejudicados - em nosso idioma, burros -, que padecer sob a chatice dos politicamente corretos. Não suportaria ter um deles ao meu lado, em um restaurante, e passar o vexame de ouvir seu pedido ao garçom:

— Quero uma carcaça de animal processada, mal passada, por favor.

Fico a imaginar a expressão atônita do garçom que, para não ofender o cliente, não pede explicação. Mas, atormentado pela dúvida, esvai-se e exala fragrância não voluntária - o que nós, in corretos, chamamos prosaicamente de suor.

Não. Decididamente NÃO! Prefiro a marginalidade dos outs. A originalidade dos não fashion. A autenticidade dos politicamente in corretos. Mas, a bem da verdade, dou a mão à palmatória. Ao menos num termo eles foram criativos e, para boa parte dos in corretos, acertaram em cheio:

Casamento — encarceramento doméstico.

Para os que não conseguiram decifrar:
Verticalmente comprimido - baixo;
Suíte de custódia - cela;
Exploração da Mãe-Terra - agricultura;

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