Simone Salles

Simone, Si, é jornalista e escritora, trabalhou em jornais e revistas da grande imprensa, como Jornal do Brasil, Folha de São Paulo e Correio Braziliense. Morou em Brasília 14 anos, onde também foi secretária-adjunta de Comunicação Social do Governo Cristóvam Buarque.

Coluna de 16/2
(próxima coluna:26/2)

"... Só que sofri tanto
 que grito, porém,
daqui p'ra frente:
Outras palavras ..."

(Caetano Veloso)

Outras Palavras

      Caetano Veloso compôs há coisa de uns 20 anos uma canção cujo nome e versos sempre me intrigaram: "Outras palavras". Só há pouco tempo, porém, conheci o causo que serviu de inspiração a Caetano. É a estória de uma mulher que abandonou o marido, em Santo Amaro da Purificação, cidade natal dos Veloso.   

     O fato em si, nada tem de extraordinário. Seria a estória de mais uma mulher, que infeliz com a rotina de uma cidade do interior, com o dia a dia de um casamento falido, decide abandonar casa, marido, cidade. 

     O que torna essa mulher especial e sua estória única é seu bilhete de despedida, deixado em cima da geladeira sob a guarda do indefectível pingüim. Nele, ela explica e se explica: "Vou embora. Tenho sido muito infeliz. Quero outras palavras em minha vida".

     Chega a ser inacreditável o poder de síntese e a poesia com que essa mulher do povo, simples, anônina, apenas mais uma  numa multidão de infelizes anônimas como ela, teve ao resumir em tão poucas linhas, todo seu anseio  por mudança.  Uma mudança profunda, trancendente.

     Talvez  ela ansiasse pela realização de sonhos adolescentes  ou fantasias adultadas. Desejasse desafios e descobertas em lugar  da já conhecida monotonia  de seu  cotidiano. Ou, simplesmente, ter a possibilidade de concretizar  desejos acalentados por anos a fio.  Tudo  isso  é mera   suposição,  conjecturas de outra mulher. O certo é que nela não morreram a esperança ou a  fé em sua capacidade de reescrever a própria vida. 

     Admiro a sensibilidade do artista. Admiro, porém,  ainda mais a coragem dessa mulher. Porque mudar exige coragem quase suicida.  Não digo isso de graça, por inteligência, dedução lógica ou iluminação divina. Digo com a convicção de quem, um dia, também buscou para si outras palavras .

     Para mudar é preciso pular o muro no qual enclausuramos a vida, tijolo após tijolo, ano após ano. É necessário estar pronto para lutar pela chance de voltar à luz. É imprescindível ter a ousadia de optar por renascer. Mudança dói, dói p'ra burro! Dor que não passa logo nem tem lenitivo. A cura só com o tempo.

     A consciência da mudança também não vem assim, de cara, instantaneamente. A ruptura pode ser imediata, mas  mudança é  processo. A descoberta, lenta e cotidiana.  Percebemos  o que mudou a cada reação diferente que temos às situações já vividas. Somos surpreendidos pela pessoa que nos tornamos e ainda não conhecemos.

     Diante do espelho, cumprimos as formalidades:

     - Muito prazer...

     - O prazer é todo meu...

     Apresentamo-nos a nós mesmos. Sabemo-nos iguais e diferentes, parceiros e cúmplices na aventura, no desafio de seguir em frente sem mapa nem bússola, movidos  pelo instinto de sobrevivência.  Pela necessidade de outras palavras .

     E aí se inicia um novo capítulo da estória de cada um, cujo ponto final caberá aos deuses colocar. O que posso dizer é que, apesar de tudo e por tudo, vale. Vale pular o muro, vale recomeçar e redescobrir, vale refazer a vida, vale tropeçar, cair e levantar novamente. E continuar levantando sempre que necessário for. Porque vale viver. Vale, sobretudo, viver a vida que queremos , com as palavras que escolhemos.

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