Simone Salles

Simone, Si, é jornalista e escritora, trabalhou em jornais e revistas da grande imprensa, como Jornal do Brasil, Folha de São Paulo e Correio Braziliense. Morou em Brasília 14 anos, onde também foi secretária-adjunta de Comunicação Social do Governo Cristóvam Buarque.

Coluna de 26/2
(próxima coluna:6/3)

Conjugando o Amar....

"... Gosto e preciso de ti.
Mas quero logo explicar
não gosto porque preciso.
Preciso sim, por gostar..."

 Mário Lago

     Eu amo. Tu amas. Ele ama. Nós amamos. Vós amais. Eles amam. Amar é isso. Verbo a ser conjugado em todas as pessoas, mas num só tempo: o presente do indicativo. Jamais no passado. Nunca no futuro. Sejam quais forem as formas de conjugação. Muito menos no condicional. Subjuntivo e particípio devem ser banidos. Ideal mesmo é conjugar Amar, sem  pudor, valendo-nos do gerúndio. Amando. Assim - simples, nominal, verdadeiro. O verbo-sentimento Amar basta a si mesmo. Dispensa complementos, prescinde de adjetivos.

        Amar é tudo. Verbo-sentimento sublime. E, por ser assim, não deve ser dito levianamente. Sagrado, merece reverência. Nada de usá-lo  indevidamente, como bordão ou gíria. Sacrilégio incluí-lo numa frase banal, prosaica. Amar não é modismo, independe de tendências e estações. É perene. Âmago do ser. Imprescindível ao Homem. Dói-me a alma ouvir um "Amo esse carro", "Amo essa roupa", "Amo esse móvel". Só ímpios cometem tais blasfêmias! Para esses rogo por clemência, tornando minhas as palavras Dele. "Pai perdoai-os. Eles não sabem o que dizem".

        "Amar, verbo intransitivo", disse Drummond em um de seus mais lindos poemas. Certo. O verbo é intransitivo. O sentimento, porém, é transitivo e transigente. Amar-Amando é a  reciprocidade, tácita, de concessões  e renúncias. Quem ama cede e concede. Releva. Perdoa.  Porque o Amar-Amando  é obra edificada sobre carícias de "deixa p'rá lá", "esquece", "não liga", "não foi nada", "tudo bem". Frases sussurradas em meio a sorrisos ternos, sinceros. Amar-Amando é doação. É cumplicidade. Entrega deliberada e consciente. Portanto, não cabe cobranças ou imposições. Sob pena de ceifar do verbo-sentimento seu significado mais profundo, não é recomendável conjugá-lo no imperativo afirmativo.

        Quem Ama-Amando não ordena.  Não determina. Não manieta. Não obriga. Não avilta. Não violenta o amado, ao recusar-lhe o direito de ser o que é, como é. Quem Ama-Amando respeita. Admira. Compreende.  Amar-Amando não é subserviência. É aquiescência. Não é anulação. Não é invalidação de si próprio ou do outro. É reconhecer defeitos e virtudes, sem constranger o parceiro a tornar-se a materialização de  utopias amorosas ou fantasias neuróticas de perfeição. Amar-Amando é a aceitação plena do indivíduo que amamos. É a permanente e silenciosa busca do equilíbrio, do encontro, do consenso - mesmo que utópico.  Amar-Amando subverte até a aritmética. A soma de 1 + 1 terá sempre como resultado o número 3. Pois é absolutamente necessária a plenitude do eu e do tu para que o nós exista.

     Peca quem, na tentativa equivocada e vã de agradar o amado, abdica de sua individualidade. Criminoso quem se arvora em deus e tenta - algumas vezes com sucesso, pois abusa da fragilidade alheia - transformar o outro na personificação de seus desejos. Ao conseguir seu intento, desama e renega a própria criação. A criatura, por sua vez, num súbito lampejo de consciência, ao desconhecer-se, desama e despreza o criador.  É o assassínio bárbaro do Amar. Crime brutal. Hediondo. Sem direito à regalia ou indulto. Como amar e ser amado-respeitado pelo  outro se não amamos-respeitamos a nós mesmo e ao outro?  Tão fácil, mas superficial e falso, é Amar por causa-de. Difícil, mas verdadeiro, é Amar apesar-de.

     Apesar de discordarmos quando o tema é polêmico. Apesar de  irritarmo-nos com a forma, intempestiva ou excessivamente cautelosa, com que ele age em momentos decisivos. Apesar  de diferirmos no modo como demonstramos esse amor - um é silêncio e gestos, o outro é palavra e dengo.   Apesar de divergirmos nos gostos - um quer Almodóvar, o outro prefere Tarantino; um quer comida italiana, o outro prefere sushi. É não fazermos perguntas desnecessárias, nem anteciparmos respostas. E, sobretudo, apesar de   não gostarmos de certas peculiaridades do amado. Mas compreendermos, que elas são partes indissociáveis dele. E é justamente esse conjunto, que o torna  tão especial para nós, único dentre os  bilhões e bilhões de humanos que povoam o planeta. Amar-Amando é isso: respeitar as diferenças e permitir que as semelhanças sobressaiam.

    O gostoso de Amar-Amando é  sentirmos prazer nas coisas mínimas. Vermos poesia nos fatos e gestos triviais do cotidiano. Sermos tomados por uma alegria calma ao ouvir seus passos. Intuirmos seus movimentos e ter a alma invadia por uma indefinível sensação de paz.  Ignorarmos os traços assimétricos de seu rosto e descobrirmos beleza no jeito como arqueia as sobrancelhas, numa muda interrogação. Sermos seduzidos, diariamente, pela forma como ele se move pelo mundo. Encantarmo-nos com seu modo - para nós, especialíssimo - de acender o cigarro e expelir a fumaça. Conhecermos seu hábito de correr os dedos pelo cabelo. E, mesmo assim, surpreendermo-nos com a beleza mansa do trejeito, a cada vez que o gesto se repete. É ouvirmos o que diz quando cala e o que não diz quando fala.

     Amar-amando passa sem a presença física do Amado, pois sua imagem está impressa na lembrança. Sem ser obsessão, é para ele o primeiro pensamento do dia e a última oração da noite. É pularmos da cama felizes apenas por saber que ele existe e vive. Perto ou longe. Que importa?  É flutuarmos sem tirar os pés do chão. É termos a cabeça nas nuvens, sem com isso perdemos a perspectiva da realidade. Sentirmo-nos plenos, absolutos, diante de tudo e de todos. É acreditarmos, mesmo que as circunstâncias digam o contrário, que há sempre solução para os problemas. E que, para alcançarmos o que desejamos, basta perseverar. É ter uma inabalável fé  Nele, em nós, na Humanidade. Amar-Amando é a ausência de expectativas mirabolantes. É obter satisfação  no sentir pelo sentir.  É saborearmos a felicidade em pequenas doses diárias. Homeopáticas. Teraupêuticas. Revigorantes. Enfim, é estar de bem com a Vida e amá-la sem restrições. 

     Confesso: eu Amo. Amo-Amando.

     Como admitiu Vinícius de Moraes, em “Escravos da Alegria”:

     - Se o amor é fantasia, eu me encontro ultimamente em pleno carnaval.

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