Simone Salles

Simone, Si, é jornalista e escritora, trabalhou em jornais e revistas da grande imprensa, como Jornal do Brasil, Folha de São Paulo e Correio Braziliense. Morou em Brasília 14 anos, onde também foi secretária-adjunta de Comunicação Social do Governo Cristóvam Buarque.


Coluna de 16/6

(próxima coluna 26/6)

Constituição Existencial (*)

               Hoje não há crônica.
               Hoje não há coluna.
               Hoje não escreverei.  

               Ignorarei Palavras. 
               Qualquer Palavra.
               Todas as Palavras.

               Rebelde, afronto minha própria compulsão pela escrita. Hoje exorcizarei letras, sílabas, acentos e pontos. Não ousem  assombrar-me. Hoje não escolherei assuntos. Nem deixar-me-ei por eles ser escolhida. Não buscarei verbos. Não evitarei adjetivos. Não optarei por esse ou aquele substantivo - exato, preciso -, que exprima o que desejo dizer. Hoje não reunirei sujeito, verbo e predicado. Nem com eles  formarei orações. Que, juntas, comporão períodos. Unidas, tornar-se-ão parágrafos. E estes, encadeados, resultarão em mais uma enorme rasura no texto-contexto de mim.

               Hoje, decididamente, não escreverei. Por quê? Não desejo falar. Há muito minha fala é composta por palavras escritas. Escrevê-las, porém, por vezes, obriga-me a pensar. E hoje eu não quero pensar. Não quero sequer correr esse risco! Sem expressar nada, coisa alguma, quero sentir. O que teria eu para dizer a outros? Todas as palavras já foram ditas. Todos os sentimentos revelados. Todos os sonhos confessados. Todos os castigos aplicados. Todos os anseios externados. Todos os pesares lamentados. Todas as fantasias realizadas. Todos os erros perdoados. Todos os pecados redimidos.  

               O quê, então, dizer?
               Por quê, então, falar?
               Para quê, então, escrever?

               Quero sentir no mais absoluto silêncio. Quero o repouso do corpo, o resguardo da alma. Quero a clausura incorpórea, sensível, que só os humanos têm. Cessem  todos os sons. Aquietem-se todos os meus eus. Calem-se todas as  vozes que em mim habitam e ansiosas clamam. Ininterrupta, implacável, alucinante balbúrdia interior. De mim, apartem-se todos e todas. De mim, afaste-se tudo e qualquer coisa. Quero a companhia  de mim mesma. Apenas eu comigo. Eu com minha imaterialidade. Nada mais. Ninguém mais. 

               Quero a emoção em lugar da razão. Quero perder-me em estranhas vias, suaves veredas. Sem rota precisa ou direção certa. Quero a sinuosidade das curvas, não a severidade das retas. A maciez da relva, não a solidez da terra. Quero é a angústia kierkegaardiana, o sentimento que nos  delata como Humanos. Revela-nos como espírito. Desperta-nos para a possibilidade - bem mais que delírio, muito mais que desvario - de sermos LIVRES!

               Peço trégua ao mundo,  à vida, às gentes. A Terra não me ouve. Gira, inexorável, em sua rota em volta do Sol. Quanto a esse fato - além do meu controle, aquém do meu mando -, eu nada posso fazer. Não sou Deus. Não me arvoro em deusa. Mas contra ele, obstinada, lutarei. Contra ele, temerária, ousarei. Contra ele, determinada, resistirei. E, a despeito dele, sobreviverei. E, assim, hei de permanecer.

               Estática no solo.
               Imóvel no espaço.
               Parada no Tempo.

               Desafio leis.
               Qualquer lei.
               Todas as leis.

               Quero, como Ícaro,
               asas de madeira e cera,
               arriscar-me a voar.

               Ser pássaro, borboleta, asa-delta.
               Beija-flor, satélite, cometa.
               Nuvem, estrela, planeta.

               Pois hoje, precisamente hoje, estabelecerei a minha Nova Ordem Pessoal. Aqui, agora, começo a retomada de mim. Resgato-me de masmorras e porões. Desvencilho-me de correntes e grilhões. Liberto-me de cativeiros e prisões. Não mais subordinada, serva, submissa, refém. Leve, recupero partes minhas, por mim abandonas ao longo de tanto (des)caminhos. Solta, recobro meus sentidos. Livre, assumo minha identidade. Adqüiro novamente minha individualidade. Reafirmo minha integralidade: EU! Novamente EU!

               Hoje proclamo minha nova Constituição Existencial.

               PREÂMBULO:

               Eu, representante de Mim, reunida Comigo Mesma em Assembléia Emocional Constituinte para instituir uma Nova Pessoa em permanente estado democrático, asseguro o exercício dos meus direitos sociais, individuais, emocionais e existenciais. E, aqui, instituo a Liberdade, a Igualdade e a Justiça como valores supremos do Ser Humano que sou:  fraterno, pluralista e sem preconceitos.

               Art. 1º: A partir dessa data serei:

               Dona dos meus pensamentos.
               Dirigente dos meus anseios.
               Condutora dos meus sonhos.
               Senhora dos meus caminhos.
               Soberana dos meus desejos.

               Art. 2º: Revoguem-se todas as disposições em contrário.

Si, Simone Salles
Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
10 de junho de 2005.
(11h31m)

* Dedico essa crônica a minha amiga-irmã Elvira Camarinha. Escritora e Poeta portuguesa, minha parceira-sócia no Portal de Artes Entre palavras.

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