Simone Salles

Simone, Si, é jornalista e escritora, trabalhou em jornais e revistas da grande imprensa, como Jornal do Brasil, Folha de São Paulo e Correio Braziliense. Morou em Brasília 14 anos, onde também foi secretária-adjunta de Comunicação Social do Governo Cristóvam Buarque.


Coluna de 16/7

(próxima coluna 26/7)

Por quê?! POR QUÊ?!

    Houve um tempo em minha vida que me fazia essa pergunta a todo instante: Por quê? Por quê? Por quê, meu Deus ?  Perguntava-me num misto de raiva e autopiedade, perplexidade e indignação. O sujeito da oração mudava, mas a interrogação era a mesma. Por quê comigo? Por quê com ela, tão nova, com um mundo por descobrir? Por quê com ele, cheio de planos, transpirando vida por todos os poros?  Por quê com eles, que trabalharam tanto, décadas a fio, e só agora iriam desfrutar a VIDA?

    Fiz e refiz essa pergunta, a mim e a Ele, exaustivamente, anos após anos. Buscava resposta para minha inconformidade diante das fatalidades e desgraças cotidianas. Fiz essa pergunta diante do Andorinhas, envolto em chamas, enquanto assistia impotente ao fim trágico daquelas vidas. Tornei a perguntar, perplexa e indignada, ao receber na redação do Jornal do Brasil a notícia da morte de 14 amigos-colegas, quando retornavam de uma matéria sobre a inauguração de mais uma plataforma de petróleo.

    No dia seguinte, foi a vez de perguntar por quê?! em memória do Samuca, Samuel Wainer Filho, que partiu num absurdo acidente de carro, quando retornava de Campos, onde fora cobrir o acidente que vitimara nossos amigos. Quantas vezes fiz e me fiz essa pergunta? Nem sei. Ela estava sempre comigo.

    Por quê?!

    Ao ver o rosto encovado, as barrigas d'água das crianças ribeirinhas do Negro, Branco, São Francisco e Amazonas.

    Por quê?!

    Ao ver cenas de mulheres famélicas tentando, desesperadamente, ainda nutrir com sua seiva, seu leite, seus bebês – tão ou mais famélicos que elas próprias?

    Por quê?!

    Ao ver humanos assassinando humanos, usando o terror em nome de crenças, sejam elas religiosas ou políticas.

    Por quê?!

    Ao ver pessoas honestas, trabalhadores, moradores de favelas tornados reféns pelo terror imposto pelo poder do tráfico, que transpôs limites e hoje aterroriza o asfalto?

    Por quê?!

    Ao ver crianças, adolescentes, adultos subjugados pelas drogas lícitas e ilícitas, tornando-se assassinos por elas e também por elas assassinados.

    Por quê?!

    Ao olhar corpos de meninos, mulheres e homens executados friamente, vítimas da violência , da insanidade e insensatez humanas.

    Por quê?!

    Ao ver filhos, assassinos de seus pais. Ao ver pais, violadores de seus filhos.

    Por quê?!

    Ao ver mulheres ensangüentadas, trânsidas de medo, após mais uma surrada covarde perpetrada por seu marido, companheiro, amante. Aquele que, um dia, foi o amor de sua vida.

    Por quê?!

     Ao ver o corpo de meu pai,  indignamente nu, estirado numa gaveta de necrotério.

    POR QUÊ?!

    Ao ver meu filho numa incubadora, entubado, crivado de agulhas, ligado à VIDA por meio de fios e aparelhos.

    Nesse dia, 23 de junho de 1997, por volta das 17h, fiz essa pergunta, a mim e a Ele, pela última vez. Não sei explicar, talvez não haja mesmo explicação lógica. Deixei aquela UTI com uma força que jamais supus ter. Então O percebi. Só então O senti. Verdadeira e completamente.

    Deus. Que importa por qual nome é chamado? Força avassaladora que nos toma, misto de redenção e êxtase. Sabia que era Ele ao meu lado. Passei ali, naquele momento, a me entender com Deus. No lugar das perguntas, veio à aceitação. Não com subserviência. Com confiança plena. Absoluta. Creio que o nome disso é Fé. Não mais O questiono. Aceito o que vem da VIDA de forma resignada, mas não de braços cruzados. Ele mesmo disse nas Palavras de seu filho: "... Faça por ti que Eu Te ajudarei ..." .

    Estou fazendo. Confio Nele de olhos, coração, alma e espírito abertos. Não me tornei santa ou carola. Sinto o que todos sentem diante de perdas, para nós, inexplicáveis. Primeiro, o choque, a perplexidade. Ficamos paralisados, imóveis e estáticos, diante do que nos é inadmissível. Depois a raiva, a indignação, a revolta. Sim, toda perda é  triste, dolorosa, irreparável. E, sempre, nos parece sem sentido. Onde está o por quê?!

    Nesses instantes, volto meu Ser para Ele. E se, ainda assim, a dor cega-me e impede-me de senti-Lo, razão suplantando a Fé - ao insistir e exigir respostas plausíveis para o implausível- , recordo-me de Willian Shakespeare em sua enorme e poética sabedoria.

"... Há mais entre o Céu e a Terra do que a nossa vã filosofia pode supor ..."

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