Simone Salles

Simone, Si, é jornalista e escritora, trabalhou em jornais e revistas da grande imprensa, como Jornal do Brasil, Folha de São Paulo e Correio Braziliense. Morou em Brasília 14 anos, onde também foi secretária-adjunta de Comunicação Social do Governo Cristóvam Buarque.


Coluna de 6/8

(próxima coluna 16/8)

Nós e o sorriso do Gato de Alice

“... – O senhor poderia me dizer, por favor, qual o caminho
que devo tomar para sair daqui? – perguntou Alice.
– Isso depende muito de para onde você quer ir – respondeu o Gato.
– Não me importo muito para onde... – retrucou Alice.
– Então não importa o caminho que você escolha – disse o Gato. ...”.

“As Aventuras de Alice no País das Maravilhas” , Lewis Carrol
(diálogo entre as personagens Alice e o Gato de Cheshire, Capítulo 6)


Se a Vida imita a Arte, nós, ocidentais, convertemos a existência em uma deplorável adaptação da melhor obra de Lewis Carrol. Transfiguramo-nos, numa representação canhestra – carente de elegância, pobre de estilo e destituída de sedução – do delicioso Coelho Branco, de “ As Aventuras de Alice no País das Maravilhas ”. Como a personagem de Carrol, estamos sempre a consultar o relógio, invariavelmente atrasados para algum compromisso inadiável. Incorporamos a premência como parte de nosso dia a dia e transformamos o ato de viver numa eterna azáfama. Simplesmente, seguimos a manada – sem questionar a razão ou o porquê.

Desconhecemos o líder desse aflito rebanho. Ignoramos os motivos reais dessa correria. Sequer sabemos qual o destino que, com tanta sofreguidão, buscamos alcançar. O corre-corre incorporou-se como algo inevitável. Afinal, tantas são as coisas por fazer, tantas são as obrigações! Trabalho, filhos, casa, médico, filas, trânsito. Ah... as famigeradas contas. Contas, contas, pilhas de contas a pagar. E, por mais que nos esfalfemos, terminamos os dias - com raríssimas exceções - com a sensação de que esquecemos algo, deixamos alguma coisa inacabada.

Há dias então que o cansaço nos toma. Nem dormir conseguimos. Rolamos de um lado para outro na cama. Insônia. Madrugadas em claro. Haja chás, uísques, lexotans. Idéias, lembranças, sentimentos, restos do hoje e a agenda de amanhã passam, ininterruptamente, pela cabeça. Um simulacro desses letreiros de rua, que dizem hora, cotação da bolsa de valores e um sem-número de informações que não sabemos, porque nunca tivemos tempo de parar e ler. Por quê?

Porque precisávamos alcançar a agência bancária ainda aberta. Precisávamos aproveitar o sinal que abriu e atravessar rapidamente a rua, antes que os carros avançassem a faixa de pedestre, sob o olhar indiferente do guarda. Precisávamos cumprir prazos inegociáveis. Precisávamos fazer supermercado a tempo de buscar os filhos no colégio. Precisávamos passar na drogaria para repor o estoque de antiácidos, analgésicos, relaxante muscular e ansiolíticos. Precisávamos pegar as roupas no tintureiro; trocar o óleo do motor e calibrar os pneus do carro e, ainda, cortar cabelos e aparar unhas.

E, assim, a vida vai passando por nós.  E nós, passando  por ela. Cada uma em seu ritmo. Ela, no compasso inexorável dos segundos, minutos, horas, dias, semanas, meses, anos, décadas, séculos, milênios. Nós, premidos por essa pressa insana. E quando nos faltam argumentos para explicar essa urgência inexplicável, apelamos. Sem qualquer escrúpulo, até porque em boa parte inconsciente, replicamos com as surradas desculpas:

– É a luta pela sobrevivência; são esses dias bicudos, de vacas famélicas; é o tempo, que passa cada vez mais rápido; é a Vida! – tentamos justificar.

E sempre o fazemos num tom entre o melancólico e o patético. Descarada autocomiseração. Lamentamos essa loucura coletiva, que acometeu a humanidade do lado de cá do planeta. Com argumentos duvidosos e entremeado por uma torrente de queixas, demonstramos nossa inconformidade com o ritmo imposto, sabe-se lá por quem, aos nossos dias. E, por nós, aceito sem contestações. Submissos. Obedientes. Servis. Dóceis. Indulgentes.

“... – Eu acho que você deveria fazer alguma coisa melhor com seu tempo –
disse Alice – ao invés de gastá-lo com charadas que não têm respostas.
– Se você conhecesse o Tempo tão bem quanto eu conheço – O Chapeleiro
falou – não falaria em gastá-lo como se fosse uma coisa. Ele é uma pessoa. ...”

|(idem, idem, Capítulo 5).

Para manter as aparências, da boca para fora, bradamos:

– “Não! Não estamos resignados!”.

Grandes canastrões que somos. Não convencemos sequer a nós mesmos! Apostamos que nossos amigos, nossos amores, entenderão. Afinal, passam pelas mesmas agruras. Com esse pensamento equivocado, perdemos o prazer de compartilhar a vida com quem amamos. Justificamos para nós mesmo, na esperança vã de apaziguar aquela pontinha de consciência que ainda nos resta e acalmar nosso coração: C'est la vie...

Enveredamos por descaminhos, que nos levam ao isolamento. Logo vem a fadiga. Em seguida, o estresse. Depois, a depressão. E, por fim, a ruptura. O distanciamento com os que nos rodeiam e ousam não apressar o passo. Esses vão ficando, cada dia, mais ao longe. Até que os perdemos de vista. O resultado é mais que óbvio. E, esse sim, inevitável. Esquecemos e somos esquecidos. Depois, com uma espécie de prazer masoquista, ficarmos a lamentar a solidão e a chorarmos perdas que nos infligimos. 

Deixamos para mais tarde, sempre para depois, tudo que nos pode trazer felicidade.  Morremos em vida. Não vivenciamos as situações que nos proporcionam satisfação. Ignoramos o que nos dá alegria. Abandonamos o que nos realiza. Negligenciamos o contato com os amigos, com as pessoas que amamos. Sobreviver é necessário. Viver é preciso. Ter prazer na vida é imprescindível.  É isso ou assumirmos a loucura nem tão mansa dos eternamente atormentados.

Atitude. Isso, A – TI – TU – DE.

Na falta dela, quem sabe adotarmos o Gato de Alice em nossas vidas? Essa consciência crítica, e irreverente. Sobretudo, irônica e cínica, que aparece e desaparecer a seu bel prazer, sempre a espicaçar-nos em nossa seriedade, premência e certezas? A mostrar-nos, com seus sorrisos sarcásticos, nossas incoerências e arrogâncias. Uma frase, uma questão. Temos respostas para elas? Se não, procuremos. Há quem diga, cientistas renomados e esotéricos nem tanto assim, que o Tempo passa, de fato, cada vez mais rápido. O centro magnético deste planetinha move-se e nada podemos fazer contra isso. Não seria mera impressão nossa. Mas, se é assim, não seriam esses mais motivos para pisarmos no freio dessa existência sem sentido?

Creio que é disso que precisamos para escapar desse círculo viciante e vicioso. Tomar a atitude de chegarmos à janela, à porta ou no meio da rua – se a timidez não impedir - e gritar a plenos pulmões para o mundo: Pára já, que eu quero descer!   E então, relaxar, sossegar e darmo-nos ao desfrute de VIVER! Simplesmente viver. Aproveitarmos a companhia dos amigos, dos filhos, da pessoa amada. Percebermos as cores e os sons do dia e da noite. A intensidade dos pequenos momentos, a beleza das coisas simples. Sem paletó e gravata, sem terninho e salto oito. Sem agenda, celular, relógio.

“... - Por favor, a senhora poderia me dizer (...) por quê seu gato sorri desse jeito?
– Porque ele é um Gato de Cheshire – respondeu a Duquesa – é por isso.
– Eu não sabia que os gatos de Cheshire sempre sorriam, de fato, eu nunca soube que gatos pudessem sorrir – retrucou Alice.
– Todos eles podem – afirmou a Duquesa – e muitos deles o fazem.
– Eu não conheço nenhum – disse Alice muito polidamente (...).
– Você não sabe muito – disse a Duquesa, e isso é um fato. ... “

(idem, idem, Capítulo 6).

Danem-se os compromissos! Se perdermos esse metrô ou ônibus, em seguida outro comboio ou coletivo passarão. E não morreremos por isso! Para que ultrapassarmos os limites de velocidade? Corrermos a 120km/h para chegar três minutos adiantado ao destino? Para quê? Que diferença fará – a não ser em casos de vida ou morte – esses insignificantes três minutos? Liguemos o nosso foda-se individual e o deixemos no automático! Chefe reclamou do atraso de cinco minutos? Chefe, sinto, mas o trânsito nesse horário é congestionado. O cliente não pode esperar? Remarque a visita. O (a) namorado(a) estrebuchou com a demora? Dê de ombros e diga simplesmente: foi mal, sinto muito.

Coisa mais gostosa receber notícias dos amigos e poder contar-lhes as nossas novidades (ou a falta delas). Fazer e ouvir confidências. Trocar figurinhas sobre o antigo, o novo ou o futuro amor. Poder dizer que as crianças estão bem e, delicadamente (com ar inocente de quem não quer nada), perguntar-lhes se não as querem emprestadas por uns tempos. Pouco. Podem devolvê-las quando estiverem educadas, formadas e encaminhadas na vida.  A-do-ra-re-mos ser padrinhos e madrinhas daqueles lindos formandos. Ou, no altar, abençoá-los naquela união que durará a eternidade – de três anos, talvez?

Dizer aos amigos e filhos e ouvirmos deles o quanto são amados e como somos queridos. Chamá-los para ver em vídeo ou DVD, com direito a pipoca e refrigerante, aquele filme genial do Tarantino  - que esteve por meses em cartaz, mas não tivemos tempo para o cineminha. Aceitar o convite para um copinho despretensioso num final de tarde qualquer. Puro pretexto para colocar a conversa em dia e desfrutar da companhia do outro. E, se possível, fazer novos amigos. É, aqueles que sorriem gostosamente na mesa ao lado, provavelmente fazendo o mesmo que nós.

Certeza incontestável na vida, só temos uma: a morte. Mesmo assim há controvérsias sobre o assunto. Há quem diga que morremos e vamos para o Céu ou para o Inferno, com ligeira passagem pelo Purgatório. Outros acreditam que reencarnamos para expiar os erros cometidos na vida anterior, até alcançarmos o estágio de elevação e pureza necessárias aos habitantes do Andar de Cima.

Não palpito sobre isso. Não morri ainda. E se já morri alguma vez, não lembro – o que vem a dar na mesmíssima ignorância. Numa coisa, entretanto, acredito piamente. Se da VIDA levamos algo de valor – além do Bem que fazemos –, esse algo é a preciosa lembrança dos  momentos  vividos, compartilhados, com aqueles que amamos. Mais nada. Porque o resto fica aqui para os herdeiros e para a terra, que um dia há de comer a todos nós.

Aliás, alguém viu o meu Gato de Cheshire por aí?

Preciso demais dele nesse momento...

“... – Mas eu não quero ficar entre gente maluca – Alice retrucou”.
– Oh, você não tem saída – disse o Gato –.
Somos todos malucos aqui. Eu sou louco. Você é louca.
– Como sabe que eu sou louca? – perguntou Alice.
– Você deve ser – afirmou o Gato – ou então não teria vindo para cá. ...”.

(Idem, idem. Capítulo 6).

Valeu Gato!


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