Cooper na madrugada

        Cinco da matina desta quarta-feira de cinzas. Levanto-me, depois de sete horas de sono embalado. Caminho lentamente pelo quarto, em direção ao banheiro. Evito fazer barulho, para não acordar minha esposa. Em poucos minutos já estou preparado para a caminhada diária, que faço há mais de dez anos, na pista do Setor Sul. Antes de sair leio um trecho da Bíblia. É um propósito que fiz comigo mesmo. Cansado de ver o Livro dos livros abandonado num canto da casa, resolvi tirá-lo do esquecimento. Leio-o diariamente, meia página, antes de sair de casa. Espero terminar a leitura por esses dois anos. Ainda estou lendo Jeremias. Abro a porta, olho a rua, deserta, escura. Meu apetrecho de caminhada: tênis (velho, para não atrair ladrão), cação e camiseta. Lá vou eu, na cabeça um certo temor de ser assaltado. Ando no meio da rua, procurando observar nos lotes vagos se há movimentos suspeitos. Vou caminhando pela rua 89 em direção à pista. À minha esquerda, a casa de jogo Le Royale. Passo olhando, pela porta de vidro observo uma bela garota com os braços apoiados na mesa demonstrando cansaço. Caminho. Atravesso a 132, entro na pista de cooper e faço minhas orações. Alguns pedidos a Deus e a bênção para o transcorrer do dia. Caminho rápido, enquanto vou conversando com Deus. Diviso, bem adiante, dois vultos caminhando em minha direção. A distância não permite identificá-los, mas os passos e a cadência das mãos os tornam familiares. São Maria Luiza e Estela, duas amigas: — Bom dia, professor! — Bom dia meninas, respondo com a voz atropelando meus passos. Caminho. Agora estou diante do Clube da Polícia Militar que expulsa seus últimos foliões. Homens, mulheres, cansados, assexuados, "palhaços das perdidas ilusões". No cantinho do muro um casal desafia a lei da camisinha. Apresso os passos, entro na rua 87, preciso completar a primeira volta.
        Estou agora na 148, subindo no silêncio da escuridão. Vou indo. Passo diante da Rádio Independência e alguns artistas estão chegando de fusquinha, conduzindo violão. Continuo andando, apressado. Agora diante da C.P.R.M. Nada de novo, as luzes do prédio público estão acesas, todas, desvairadamente. Vou subindo a Consolação de minha São Silvestre matutina. À esquerda, o relógio do Clube de Engenharia: 5:22 minutos. Temperatura 21 graus. Vejo que a calçada diminuiu, engolida pelo Clube de Engenharia. Caminho e penso. Atinjo a 136. À direita a Padaria do saudoso amigo Goiani Roriz, assassinado covardemente quando trabalhava. Toda madrugada, Goiani passava por mim, de carro, cumprimentava-me, ia abrir a padaria. Cadê o assassino? Está faltando um Paredon neste País. Caminho revoltado. Tenho que dar três voltas. São seis quilômetros a percorrer, cada um em dezessete minutos. Acelero os passos para vencê-los em dezesseis minutos. Caminho e penso. Imagino um poema de amor. Estruturo as primeiras linhas: "Eu quero te amar, mas tenho medo/o amor tem emboscadas/ e se eu perder-me entre as teias de teus dedos?". Tento martelá-lo bem na cabeça para não esquecê-lo. É um princípio de poema. Lá vem quatro mulheres. Andam depressa. Conversam muito. São companheiras de muitos anos. Todas as manhãs estão aqui. Passam rápidas. — Bom dia. Respondo bom dia e sigo. Caminho. Ando. Na cabeça muitos sonhos. Atinjo a segunda volta. Olho para o lado do Flamboyant e vejo um clarão vermelho tomando conta do céu. Os primeiros raios solares vão transpondo o céu goianiense. O dia vai clareando e a pista se atropela com a presença de muita gente. "Bom dia, bom dia, bom dia, intermináveis bons-dias! Na terceira volta, vou me esquivando dos chatos, pessoas que se encostam e atravancam minha caminhada. Um bando de maritacas, saindo do buritizal do bosque em revoada barulhenta, voam rumo às bandas do Meia-Ponte. Penso na vida, na natureza. Penso também no vírus Michelângelo, que está chegando para infernizar os computadores. Nisso esbarro num chato que me pergunta à queima roupa: — E o Magri?

     José Mendonça Teles
1993

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