Antes que o Cuspe Seque...

Às vezes, fico pensando nas dificuldades de cada um. Ontem, fui ao sítio. É esse lugar que procuro toda vez que preciso me encontrar comigo mesma. Ver o céu, a plantação, os animais e as pessoas simples sempre me tornam um ser humano mais compreensivo, menos indagador.

Antes de começar, porém, aviso que não gosto desta forma de escrita, soa primária, rudimentar. Por outro lado, é de todo impossível, agora, dizer o que estou sentindo se não for assim. O que pretendo ressaltar, hoje, não é a arte da escrita, mas a arte da vida.

Como eu ia contando, era mais ou menos meio-dia quando parei o carro e saltou de lá de dentro do casebre o casal. Ela surgiu ariando a panela preta e o marido, assustado, pôs as mãos em pala: quem seria?

Sorri, lancei o meu boa tarde amistoso. Por dentro, é certo, eu estava remoendo meu desânimo. Eles responderam e percebi, então, que faltavam dentes naquelas bocas, meu Deus!

Tive, confesso, um certo asco pelas duas figuras. O homem estava sujo, imundo, faltava um botão na camisa e a barriga saltava para fora. Eu misturava tudo e imaginava os cheiros que dele deviam desprender: pinga, sarro de cigarro e suor. Isso me repugnava e tive vergonha de mim mesma por analisar as pessoas de modo tão duro, a ponto de ter receio, até, de estender a mão para ele.

A mulher tinha uma verruga no rosto. Uma não, duas. As unhas das mãos e dos pés estavam encardidas, arrebentadas, moídas. E o dente de ouro gritava lá de dentro, brilhando na claridade da fala, querendo fugir. Tive nojo, o vestido estampado me insultava, a voz soava lá no fundo do meu peito e voltava feito um bumbo descompassado.

Aos poucos, o choque da primeira impressão passou e comecei a enxergá-los com piedade. A cada nova sensação, eu mesma me condenava e sentenciava: como sou vil, não presto mesmo.

Pode até parecer, este texto, uma espécie de diário bobo. E se você quiser enxergar assim também, não há problema, fique à vontade. Eu só preciso, mesmo, é pôr essa briga interna para fora, ordená-la e, quem sabe, entendê-la.

Ando decepcionada demais com minhas atitudes. Analiso, critico e cobro demais. O fato de me enxergar com nojo do casal foi mesmo terrível. E passar do nojo à piedade, juro, foi pior ainda. Mas tive tudo isso e não nego, talvez seja um bom começo reconhecer as falhas.

Depois dos cumprimentos iniciais – que não passaram de dois ou três minutos –, sentamos todos na varanda. Perguntei da família, dos filhos e dos netos e respondi às indagações costumeiras sem prestar atenção.

O calor do meio-dia foi me dando uma moleza sem fim, eu me encolhia na cadeira como um pássaro recém-nascido procurando a asa da mãe. O silêncio, enfim, imperou, e pude prestar atenção à paisagem.

Debaixo dos ingazeiros, passávamos, há tanto tempo, as tardes de domingo. Era sempre tão animado, um barulho bom de quem está vivo e aproveita todos os momentos, por menores que sejam. Uma vez, lembro bem, tropecei no coxo e caí de quatro na pocilga, foi uma gargalhada só.

Tantas histórias. Tanta gente que já se foi deste mundo e tudo, aparentemente, continua no mesmo lugar. Essas idéias me assaltavam e a moleza aumentava.

Foi no meio dessas recordações que fiquei sabendo dos ossos do menino de treze anos. Vi a fotografia em preto e branco com uma mancha amarela de gordura de toucinho. É que, na fase difícil, a mulher andava com ela para cima e para baixo e, um dia, a banha respingou no filho. Quero dizer, no retrato.

Mas deixa eu começar pela ordem, que você não deve estar entendendo ainda. Eu estava ali, naquela casa simples de pintura corroída, no meio do fim do mundo, num sítio tranqüilo e bonito, mas tudo era aparência. Tranqüilidade andava longe dali, passeava a cavalo, com o dia da morte do menino de treze anos, o filho.

Era levado, muito levado, fugia da escola, amarrava o rabo dos cachorros, batia e puxava os cabelos das primas, matava passarinhos, soltava bombinhas debaixo de latas só para ouvir a explosão e a mãe gritar de susto. Surra nem era mais novidade.

Naquele dia, aliás, estava prometida. O menino havia passado da conta, arrebentado o encanamento das caixas d'água de dois vizinhos. O pai ficou esperando na porta. A chegada foi tímida: o garoto apeou do cavalo e se aproximou coçando a cabeça, ciente da traquinagem.

A mãe pôs a mão no peito, combalida. Mas o pai não bateu, não de pronto. Cuspiu no chão e falou ao menino: "Antes que este cuspe seque, você tem que voltar da venda com o chicote, depois vai apanhar com ele".

Fui ouvindo essa história e pensando no significado da palavra subordinação. Uma subordinação humilhada, ou quase isso. Mas é aqui que começa a história de verdade. O filho foi buscar o chicote e nunca mais voltou. Não porque tenha fugido, mas porque morreu esmagado por uma carreta.

O cuspe secou, o choro molhou. Nunca mais o pai foi o mesmo. Culpado, carrega até hoje o estigma e jamais estará livre dele. Envelheceu, amargou, perdeu os dentes e a vida. A esta altura, você deve estar se perguntando o por quê de eu ter contado isso aqui.

Não há nenhuma pretensão, em verdade. Narrei a história apenas porque, na conversa, a mulher apontou um pé de girassol e me disse: "É lá que meu filho dorme agora". E o homem abaixou os olhos tal fez o filho, na porta da casa, no dia da morte.

Como eu não ligasse os fatos, ouvi-os todos até a remoção dos ossos da gaveta do cemitério para a cova do jardim. Ali, pertinho, ela sentia o filho de volta, era como se, a qualquer momento, ele pudesse aparecer, soltar uma bombinha e matá-la de susto! Ah, se o menino fizesse isso, ela morreria de felicidade, isso sim!

O girassol soltava seus amarelos e seguia o curso do tempo, um quase menino que, um dia, alcançaria a maturidade. E aquilo tudo me deixava mais e mais pensativa. Nem o tempo, às vezes, é capaz de apagar uma dor. Eu via ali mesmo o exemplo do pai, compreendia a ansiedade ao pôr as mãos em pala quando cheguei... decerto esperava pelo filho, não é?

Não tive mais pena. Nem asco. E o passado me soou tão distante que já não me fazia falta. O presente estava ali mesmo, comigo, e foi com alegria que jantei o torresmo com arroz e feijão na mesma mesa do casal. Eles ainda não sabiam, mas a felicidade, descobri, está onde queremos que esteja. Amém!

Érica Antunes

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