Carinho de deputado

                    Abraço de político é como abraço de tamanduá: a vítima do "aconchego físico", ou da patriótica intimidade física, não escapa nem se tiver muita fé em Deus. É tiro e queda! Lá vem o político, todo faceiro, rindo mais que mala de mascate, em um sorriso largo, que vai de orelha a orelha. Uma coisa intriga minha caixa de massa cinzenta: porque todo político ri o tempo todo, sendo que muitos passam a impressão de estarem sempre a rir da gente? Ou será que político ri à tripa forra porque rico ri à toa? Lá vem o candidato, todo lampeiro, dando pão a quem tem fome, e cerveja gelada a quem tem sede. Uma vez aberta a temporada de caça ao eleitor, eles chegam aos magotes; como se tivessem o dom da onipresença, os candidatos então apresentam seus semblantes em todos os lugares, e quando não comparecem, de corpo presente, têm o cerimonioso cuidado de mandar seus representantes.
                    No afã de agarrar o eleitor pelo colarinho, arriscam ser atropelados — em um salto magnífico, capaz de destronar o recorde do João do Pulo, o candidato salta de uma calçada a outra, a fim de não deixar escapar o eleitor mais fugitivo, ou recalcitrante. Uma vez alcançada a vítima de seu intrépido e diuturno "patriotismo" esta recebe um aperto de mão emocionado e violento, capaz de fraturar, de uma só vez, e em vários lugares, tanto a falange quanto a falanginha e a falangeta. Omoplatas, clavículas e o costelariado em geral, estando ou não abaixo da linha de pobreza, não estão isentos de risco. Por sinal, esses ossos são incluídos entre os que mais sofrem, na batalha campal para a salvação dos excluídos.
                    Eleitores que já sofrem de coluna, de hérnia de disco, bem como de outros ossos do ofício, sofrem dobrado, em tempo de eleição. Sabendo, como sabem, que "tempo de eleição é tempo de pegar na mão", rasgam gerais e dão voltas quilométricas; tudo vale a pena, se o eleitor ganhar o galardão de não passar pelo transe de ter, como uma pedra em seu destino, o candidato afelizardo biliordário. Carreatas políticas, em avenidas engarrafadas, em horário de pico, não é só pedra no destino — é uma pedreira, dessas que nem os mineiros dão conta de dinamitar, para vender a quilo. O osso duro de roer é o fato de todo candidato achar-se no direito e no de ver de abraçar (de corpo inteiro) todo vivente e todo bípede (desde que seja votante) que encontre em sua caminhada rumo ao "pudê". Se ao menos Luiza Brunet ou a ninfeta Angélica resolvessem abraçar uma teta pública...
                    Conhece-se o político pelo estilo que adotou, no corpo-a-corpo com o eleitor. Nisso eles são supra-partidários: quase todos abraçam de corpo inteiro", barriga contra barriga, braços e pés juntinhos, como dançavam (quase parados) os namorados, nos antigos tempos do bolero. O estilo tamanduá é o mais adotado pelos mais votados. O problema é que os salvadores da pátria não fazem antes uma enquete para saber se suas "caríssimas eleitoras" estão a fim de encarar seus aconchegos cívicos, que, muitas vezes, passam dos limites, chegando a ser bolinação política explícita, perpetrada em público, ao vivo e em cores.
                    Os que abraçam as damas de banda, oferecendo os flancos de suas carcaças semoventes, são tidos como "não chegados a o pedaço". Candidatos há que puxam o eleitor para si, com violento arranco, quando este, constrangidamente, e só por educação, estende-lhe a mão. Tenho uma amiga que implicou com isto: "Quem lhes deu permissão para tanta bolina? Por acaso pediram autorização a meu marido para me abraçarem e beijarem com tanta paixão e ardor? Se a gente não sai de fininho, eles podem até arriscar um ardente e eleitoral beijo de língua...".
                Os deputados em geral são parrudos e bem nutridos, e imagino que jetons e subsídios assegurem, a estes defensores do povo, uma dieta rica e substanciosa; o que já não acontece com a maior parte de seu eleitorado, constituído por meros comedores de farinha e contribuintes do erário. Um dia desses, estando entediado, compareci, com meu semblante de Cristo que não deu certo, a uma divertida e ordinária sessão em nossa casa de leis. No caminho para as galerias, onde o povão se aboleta (quando lá vai protestar contra algum achatamento ou atropelamento salarial) dei de cara com um deputado de porte atlético, que vive nas nuvens. Como desimportante militante das fileiras do poetariado, mesmo estando sempre preso à boa terrinha goiana, também sou um tanto voador. Cumprimentei o legislador com a efusão que se deve tributar àqueles que lutam por nossos interesses. Ele vinha descendo e eu subindo (o que é raro, tanto no caso dele, quanto no meu) os lances de uma escada. Mesmo sabendo que ele não sabe quem sou, nem o que faço no planeta terráqueo embora já tenhamos trombado nossos semblantes vezes inúmeras, nos corredores da "casa da mãe Joana de Alfredo Nasser") tive a pachorra de perguntar: — Como vai nobre deputado?  — Vou bem, e você, meu correligionário? E, como a se desculpar por não saber o interessante e patriótico nome com que fui levado à pia batismal, acrescentou: — Quase não o reconheci! Você ficou branco!". Espantado com minha mudança de cor, não tugi nem mugi, embora fosse grande a vontade de declarar, peremptório: "Mas eu nunca fui preto!". Não o fiz, no entanto, com medo de ser por isso acusado de racismo, por infringir a Lei Afonso Arinos.
                    Nisso, quando ainda não me refizera da supressa de saber que já fui preto um dia, o atlético e esmeraldino deputado, à guisa do cordial afago eleitoral, cumprimentou-me com efusão cívica, desferindo em meu peito poético (onde bate um coração romântico) um tapa legiferante — de fazer inveja ao Senador biônico Benedito Boa Sorte, tão forte que era capaz de capar um boi com sua vitaminada e tocantinense manopla! Em verdade, não sei se por consideração à minha pessoinha, ou se por desregulagem na força da manopla, o que era para ser um cumprimento legislativo foi para mim quase um nocaute.
                    É que eu não estava com um pé na frente e outro atrás, como costumo proceder quando converso com os políticos; daí porque, desequilibrado, quase rolei escada abaixo. Senti-me como o pitoresco e verboso Maguila, quando foi nocauteado nos states, caindo com as pernas cruzadas, motivo de o cérebro ter sofrido um revertério, na caixa craniana. O qual, ao recobrar os sentidos, conseguiu gungunar, a quem ouvir pudesse: "Anotaram a placa da carreta?"  Doravante, sabendo que, mesmo sendo imortal, sou um vivente mais do que morrível, tomarei mais cuidado, quando for cumprimentar ou ser cumprimentado pelos representantes do povo. É que, além de acidentes de percurso, como mero sufragante eleitoral, e contumaz comedor de farinha, também estou sujeito aos acidentes de discurso. Acidentes, por sinal, muito comuns nas jornadas cívicas, bem como e principalmente no horário ingrato eleitoral.

                    P.S. Da próxima vez que encontrar o robusto deputado tentarei aterrissar em terra firme, (e estar muito bem apoiado) para receber, sem maiores traumatismos ortopédicos, o terrível abraço de tamanduá de seu eterno e vibrante afago eleitoral.

Brasigóis Felício

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