O escritor Luiz Berto

    Para começo de assunto, mesmo despido de vaidades, de uma coisa, talvez a única, eu me vanglorio: ter nascido numa província da mata sul pernambucana, mais conhecida como "a terra dos poetas", exortação atribuída por Joaquim Nabuco, incluída em seu hino e ilustrada pelo panteão formado pelo eminente ficcionista Hermilo Borba Filho, pelo poeta modernista Ascenso Ferreira, pelo pintor renascentista Murilo La Greca, pelo artista plástico Darel Valença Lins e pela variedade de bardos e vates que se pode encontrar em qualquer esquina do lugar, a torto e a direito, alguns deles já reunidos nas duas edições da antologia "Poetas dos Palmares", organizada pelo poeta Juarez Correia. E olhem: um volume só, nem dois, não bastam mesmo; muitos mais precisam para mostrar o caldo da verve poética dos dali.

    Os tantos amigos que tive o prazer de conviver desde que nascera naquela cidade e de estreitar amizade mais ainda a partir do ginasial, quando aportamos numa sala de aula com um bocado de poeta irado, uma penca de pintores afoitos, um bando de músicos que tocavam sanfona, violão, piano, bongô, reco-reco, pandeiros e sonhos; e uns tantos simpatizantes, a ponto da gente atrapalhar os acontecimentos usuais da classe para realizações de recitais, improvisos artísticos, esquetes teatrais, shows musicais, exposições pictóricas, conseguindo até a anuência da diretoria da escola, durante o horário das aulas.

    Não satisfeitos, invadíamos outros educandários e saíamos professando nossa fé na arte em todos os recantos do município e de outras cidades da região, resultando na criação de revistas, fundação de uma editora, instalação de uma fundação cultural, manifestações as mais diversas em praça pública até satisfazermos nossos arroubos.

    Nesse ínterim, eis que conheço pessoalmente o escritor Luiz Berto, então radicado em Brasília, conterrâneo ilustre. A obra dele eu já conhecia, faltava emendar os bigodes num papo bom e numa estreita amizade.

    Foi quando eu estava para lançar meu quarto livro de poesias "Canção de Terra", totalmente dedicado à nossa cidade, quando, na ocasião, fazia parte das Edições Bagaço, e os amigos editores acharam por bem de enviar os originais para o Berto que se encontrava em Iowa, nos Estados Unidos, gozando do prestígio de um prêmio literário nacional. Isso tudo às escondidas. E qual não fora minha surpresa ao folhear o opúsculo e lá um prefácio do escritor que se arriscou dizendo: "Por fim - mas não por último - Luiz Alberto Machado tem mais uma qualidade: é meu amigo. E, como amigo meu não tem defeito, posso assegurar aos leitores que estão diante de um grande livro". Isso levem na conta da bondade incentivadora com que esta grande figura dedica aos noviços.

    Pois bem, Luiz Berto já havia influenciado toda a minha geração com a publicação do seu livro "O Romance da Besta Fubana", premiado nacionalmente, enchendo nosso âmago de uma poderosa vontade de fazer algo significativo no contexto cultural e artístico da cidade.

    Foi com essa inspiração que nos reunimos, eu, os compositores musicais, Ozi dos Palmares, Zé Ripe, Célio Carneiro e Jucimar; os artistas plásticos Ângelo Meyer, Javanci Bispo, Margareth Tenório; os poetas Paulo Menezes, Sandra Lustosa, Wilmar Carvalho, Fred Caminha; os escritores Maurício Melo Júnior, Elita Afonso Ferreira e Gilberto Melo; os grupos teatrais Terra, Trem, Zumbi; e outros tantos fazedores de arte e partimos para movimentar a terrinha o ano todo, até no carnaval, criando um bloco, o "dos Artistas", com enredo e frevo homenageando o Berto e a sua obra. Foi uma zona! Quase que finda todo mundo preso por causa da alegoria. O povo só espantado com aquilo tudo. Mas contávamos com apoio de veículos como a Revista A Região, as Edições Bagaço, a Fundação Casa da Cultura Hermilo Borba Filho, o Grupo Cultural dos Palmares - GRUCALP, a regional da FETEAPE- Federação de Teatro Amador de Pernambuco, a AVITROPAL - Associação dos Violeiros e Repentistas dos Palmares e um montão de gente criando, produzindo e executando seus trabalhos, explodindo em lançamentos de livros, shows musicais, exposições de pintura, apresentações teatrais e tantos outros eventos.

    O Berto sempre nos premiava com o seu talento ficcional, com obras marcantes pra gente: "A prisão de São Benedito e outras estórias", "A Serenata" e "Nunca houve guerrilha em Palmares", ficção esta enraizada no rincão Trombetas, nome originário do lugar à época dos quilombos de Zumbi.

    Esse caldeirão resultou na encenação do texto teatral "Pei Buft etc e coisa e tal", do Berto, que virou até expressão popular pelo sucesso obtido nos palcos do legendário Teatro Cinema Apolo, cheiínho pela borda na estréia, de não caber mais nem uma muriçoca no recinto.

    Muita embófia alimentou as estrelas do esperácuilo que reuniu o melhor elenco local, a exemplo do período áureo iniciado por Miguel Jassely, vindo então Lelé Correa e Fenelon Barreto até Hermilo Borba Filho, tempos memoráveis de antanho que foram reprimidos pela ditadura militar e acabou com tudo. Pudera, na época desses ilustres, Palmares era o "moscouzinho" pernambucano. Felizmente, no nosso tempo, já respirávamos o anseio pela redemocratização.

    Sim, de Luiz Berto guardo sempre boas lembranças e muitas saudades de encontrá-lo ali para um bate-papo e uma troca de idéias, relendo suas páginas e mergulhando no universo da minha terrinha distante com seus vivos e lêmures, sua opulência imaginária e sua decadência sucroalcooleira; sua placidez interiorana e sua loucura homicida. Guardo comigo o testemunho secular do Rio Una, nossa verdadeira fonte batismal, onde todos nos banhamos quando molecote, hoje evidenciando reminiscências vivas no meu coração.

Luiz Alberto Machado

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