O sonho presidencial

No seu primeiro dia de mandato, após a grande festa de posse que teve como atração principal muita buchada, rabada, caninha de engenho e protocolos quebrados, recolhendo-se quase à alvorada após fumar solitário quatro Habana legítimos (presente de Fidel Castro), Lula teve o seu primeiro sonho presidencial, que melhor poderíamos chamar pesadelo.
Era a primeira reunião de trabalho com seu staff. Já era meio da tarde e almoçara frugalmente pois ainda se ressentia da comida pesada da véspera. Pensava agilmente em contraste com a digestão lenta, quando uma ordenança cochichando ao ouvido de Zé Dirceu, chamou a atenção de Lula: “O que foi Dirceu?”, inquiriu. “Presidente, problemas! O dragão está lá fora, na praça, e quer bater-se com Vossa Excelência. O escândalo que faz já começa a juntar gente”. Sem entender, ele pediu mais explicações: “Que dragão, companheiro?”. Dirceu olhou os demais integrantes do Ministério, todos perplexos diante da revelação, e continuou: “O dragão da inflação, ele voltou, e quer logo hoje estragar nossa primeira reunião. Não abre mão de bater-se com Vossa Excelência. Há pelo menos 50 mil pessoas na praça”. Lula procurou esquivar-se: “Mas ele é problema do FHC. É cria do seu final de governo. Manda o Singer dizer isso a ele, lá fora. Aliás, verifica se o FHC – que sempre foi muito apegado ao poder – ainda está aí escondido por algum cômodo do palácio. Manda ele se entender com o dragão. Singer, aproveita a oportunidade – e se virou para o porta-voz com um papel rabiscado – e oferece meu autógrafo ao dragão”. Com ar contrariado, Singer levantou-se da cadeira e rumou para a saída do palácio. Em pouco tempo estava de volta com os cabelos arrepiados e o papel chamuscado na mão. “O FHC sumiu quando soube do dragão; está agora recebendo mais um diploma ‘Honoris Causas’ em Harvard. E o dragão não aceitou o autógrafo. Disse, cuspindo fogo, que não abre mão (melhor, as garras) de bater-se com Vossa Excelência. O povo está só aumentando. Há pelo menos um milhão na praça”. Lula coçou a cabeça e a  barba gris e olhou então para Palocci, reprimindo um sorriso sem graça: “Companheiro, é sua área, vá lá e resolva. Vamos torcer por você”. Palocci virou-se imediatamente para o ocupante da cadeira ao lado: “Não vamos cair na onda do dragão. Nem Lula nem eu vamos lá fora. Temos quem possa resolver isso fácil, fácil, e bateu nas costas de Meirelles, quase o jogando fora da cadeira: “Resolva, companheiro!” Estranho no ninho, Meirelles não pôde objetar. Voltou em pouco tempo, trazendo no grande bico um recado: “Presidente, o pepino é com Vossa Excelência. O dragão está cuspindo fogo. Reapareceu uma fera e com fome. Tem pelo menos 20 milhões de pessoas na praça e gritam agitando bandeiras de todas as cores: ‘Lula! Lula! Agora é Lula!’ Torcem pelo senhor contra o dragão”.
Lula buscou rápido uma saída. O povo torcia por ele e não podia decepcionar. Uma luz acendeu em sua cabeça, e pôs então os olhos brilhantes sobre o agrônomo José Graziano: “Você, companheiro, é o pai do programa Fome Zero, vá lá fora e diga ao dragão que ele chegou atrasado, o banquete foi ontem. Diga que havia comida suficiente para matar-lhe a fome, mas mesmo assim vamos incluí-lo no programa Fome Zero”. Não demorou em Graziano voltar às pressas, alarmado: “Presidente, o dragão não quer acordo, está intransigente. Quer bater-se com Vossa Excelência, disse inclusive que escolha as armas. Ele bate impaciente a cauda pontuda no asfalto da praça. Há mais de 53 milhões de pessoas lá agora torcendo e gritando por Lula”.
“Diacho!”, Lula imprecou. Olhou os semblantes graves dos assessores e pensou: ‘A parada vai ser dura, eta dragãozinho dos infernos!’ Foi então que lhe ocorreu uma idéia que não era original, já fora usada por FHC, mas como na política não há nada inusitado, podia utilizar sem medo de ser acusado de plágio: “Genoíno, liga agora para São Jorge, preciso falar com ele”. Sem demora, o eficiente articulador atendeu o presidente: “São Jorge na linha, presidente”. Tapando o fone com a mão, Genoíno sussurrou: “Está fazendo corpo mole, presidente; diz que há mais de oito anos não combate, a última vez contra o dragão foi ainda com FHC ministro, coisa e tal. Diz que sequer foi sondado para o seu Ministério e por estar destreinado recusa-se a correr tão grave risco. Na minha opinião, o que ele quer mesmo é uma vaga na equipe”. Palocci e Meirelles agitaram-se nas suas cadeiras. Sabiam das artimanhas de São Jorge e de que ele conhecia como ninguém os pontos vulneráveis para vencer o dragão. Suas cabeças estavam a perigo já na primeira reunião. Palocci adiantou-se: “Genoíno, deixa esse fanfarrão de lado. Eu acho que é hora do presidente Lula ir lá fora e derrotar o dragão”. Meirelles cerrou fileiras com o chefe e injetou ânimo no presidente: “Não se esqueça, na praça, há mais de 53 milhões torcendo pelo senhor”.
Lula engoliu em seco, levantou enérgico da cadeira na cabeceira da mesa ovalada, abotoou o paletó, guardou no bolso a caneta dos autógrafos e tentou uma paródia em tom discursivo: “Digam ao povo que se é para o bem do Brasil, eu vou lá!” Foi aplaudido de pé pelo Ministério todo. O dragão, pressentindo que Lula se aproximava, esturrou alto, cuspindo fogo pelas ventas para intimidar. O esturro foi tão grande que fez tremer a sala de reuniões. Sacudiu também a rede na qual Lula dormia – era esse um dos últimos resquícios da cultura nordestina que  conservava desde a sua chegada a São Paulo -, derrubando-o no chão. Na queda, acordou Marisa na rede ao lado. “Cadê o dragão?”, disse Lula ainda sonolento. “Que dragão, Lula? Você estava sonhando”, Marisa procurou tranqüilizá-lo. Lula agitou a cabeça, recompôs-se e pediu à mulher: “Marisa, liga para o Palocci e o Zé Dirceu. Preciso urgentemente nomear São Jorge para o Ministério”.

jjLeandro

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