A Cegueira da Visão

        Ela aceitou de pronto o meu convite. Estava tudo combinado. Iríamos nos encontrar no sábado, às 14:00 horas, em frente ao cine Paladium, em pleno coração da bela capital mineira, e dali partiríamos para visitar um determinado instituto especializado no atendimento a portadores de deficiência visual.
        Silvia era uma grande amiga e colega da faculdade de Engenharia Elétrica, que de tanto me ouvir falar das visitas fraternais que realizávamos nas tardes de sábado e domingo, ficara curiosa e prometera um dia nos acompanhar.
        Assim, na data aprazada, chegamos ao nosso destino debaixo de muita chuva e frio, num típico dia de inverno em Belo Horizonte.
        Naquela época, além da faculdade e do trabalho, eu participava de um entusiasmado e sonhador grupo de jovens, que queria mudar o mundo por meio da prática dos ensinamentos de São Francisco de Assis, o santo do Amor. Em verdade, era tanta a atração que a vida do Polverello de Assis exercia sobre nós, que vivíamos imersos numa verdadeira franciscomania. Fazíamos encenações teatrais sobre a vida do santo, seminários sobre os seus ensinamentos, além de integrarmos o coral Francisco de Assis que se apresentava em hospitais, creches, asilos e leprosários, cantando, dentre outras musicas de louvor à vida, as versões de quase todas as canções que compunham o roteiro musical do famoso filme de Franco Zefirelli intitulado “Irmão Sol, Irmã Lua”.
        E foi com esse espírito franciscano que, numa chuvosa tarde de sábado, adentramos os pórticos daquela belíssima instituição, dispostos a dar o melhor de nós aos deficientes visuais, buscando, por meio de uma boa prosa, na qual, diga-se de passagem, os mineiros são pródigos, e principalmente da música e do canto, levar-lhes um pouco de alegria e solidariedade.
        Após os cânticos e brincadeiras, tínhamos o costume de reunirmo-nos com os internos no pátio do instituto, para conversarmos e trocarmos experiências do nosso dia a dia.
        Assim, Silvia e eu ficamos debaixo de um caramanchão, conversando com uma linda garotinha chamada Marina. Ela era uma criança muito especial, pois apesar de ter apenas nove anos e ser completamente cega, encantava a todos com uma contagiante alegria de viver, permanentemente estampada no seu rostinho delicado.
        Silvia, que até então tinha observado tudo com muita admiração, estava agora emocionada com a espontaneidade e a felicidade de Marina que, por sua vez, parecia não se importar com a grave deficiência visual de que era portadora. Lágrimas fortuitas e silenciosas escorriam pelo rosto da minha amiga quando, de repente, em meio à conversa, Marina, com seu jeitinho cândido e perspicaz, disse: — “Tem alguém chorando por aqui. E eu acho que é a amiga do tio!”.
        Surpresa, Silvia fitou-me desconcertada enxugando os olhos de forma apressada, pois não entendia como é que uma criança completamente cega conseguira perceber as suas lagrimas. E então, meio sem graça, retrucou: “Não é nada não, Marina! É que caiu um cisco no olho da tia. Mas, logo, logo vai passar!”.
        Marina exibiu um lindo sorriso, e compreendendo o constrangimento de Silvia, replicou amavelmente: “Olha tia! Não fica assim não, tá? As pessoas quando vêm até aqui pela primeira vez, ficam tristes por que pensam que a gente não pode enxergar. Dá até para ouvir os seus pensamentos dizendo: — Que pena! Quanta coisa bonita essas crianças não podem ver... Mas, olha tia! Prá você ficar alegre novamente, eu vou lhe contar um segredo que nem o tio sabe”, disse ela, voltando-se ligeiramente em minha direção e apertando suavemente a minha mão.  E então, inclinou-se para Silvia, que tremulamente segurava-lhe a outra mão, e falou quase sussurrando: — “Tia... é verdade que eu não consigo ver o que você, o tio e as outras pessoas vêem. Mas, por outro lado, eu vejo muita coisa bonita que nem você, nem o tio e nem as outras pessoas conseguem enxergar”.
        Ao ouvir aquilo, meus olhos se encheram d’água e abracei-me comovido à Silvia e à Marina. Ficamos assim, juntinhos, em silêncio, por alguns minutos, como se o tempo tivesse parado, aquecidos pelo sentimento de fraternidade que emanava de cada um de nós.
        E foi então, pela primeira vez na vida, que eu pude perceber quão grande era a cegueira da minha visão.

Emmanuel Chácara Sales

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