Independência ou morte!

Vez por outra, meu caro leitor, atrevo-me aqui a compartilhar com você minhas recordações de infância e, pelos telefonemas e e-mails que recebo depois, concluo que todos se vêem um pouco na infância uns dos dos outros. Não há recordações exclusivas minhas ou suas, ou de quem quer que seja, mas todos tivemos algo em comum, seja o colégio interno, ou os medos e terrores infantis, ou as práticas cotidianas como brincadeiras, refeições, encontros familiares… Por isso é que acho que hoje vocês se reencontrarão com a própria infância e adolescência ao dividir comigo algumas recordações sobre o Sete de Setembro.

Quando muito criança, nos meus sete ou oito anos, a lembrança mais comum deste dia era o sol intenso enquanto ficávamos, eu e Bráulio, meu irmão mais novo, acompanhados de Mamãe, de pé durante horas no meio-fio, isolados da rua pela corda ali colocada para delimitar a área do desfile. É impossível esquecer o impacto poderoso dos tambores sobre os nossos pequenos corações e a beleza das notas claras das cornetas a rasgar o azul da manhã.

Depois, quando aos onze anos fui estudar no Ginásio, toda essa beleza e grandiosidade se transformou em tortura quando descobri que, nas comemorações pela chamada “semana da Pátria”, eu teria que desfilar marchando com o meu colégio mas na última fila, porque era pequena para a minha idade e era a menorzinha de todas. No primeiro ensaio, as meninas maiores riam de nós, as “pequenas”, e eu, valendo-me de “desmaios” de mentira que a diretora e Mamãe tomaram como verdadeiros, consegui ser retirada da formatura e dispensada da humilhação pública de ser a última menina das fileiras.

Aos treze anos, já tendo conseguido alguns centímetros a mais, saí da última fila e desfilei durante um ano, quando fui tomada de paixão voraz e avassaladora por Dom Pedro I, ou melhor, pelo garoto de quinze anos que representava o Imperador, cavalgando um imenso cavalo negro que o pai dele mandava vir diretamente da fazenda para o filho montar no “dia 7”. O menino era tão lindo, com seu bigode desenhado a lápis de sobrancelha, sua jaqueta azul com botões dourados e a calça branca enfiada no cano das altas botas negras de couro, que eu sentia o coração parar quando ele passava, com as ferraduras do cavalo tirando faíscas nas pedras do calçamento. Depois do desfile, a desilusão: ao ir com as colegas tomar sorvete, surpreendi Dom Pedro de mãos dadas com outra garota, mais velha, mais alta e – pior – aluna do Colégio Estadual, numa traição patente do cruel imperador ao Ginásio pelo qual desfilara e que lhe dera honras e glória.

No ano seguinte, eu já tinha quatorze anos e esperei ansiosamente ser escolhida para fazer parte do pelotão das “gregas”, que eram meninas vestidas com uma túnica curta que deixava à mostra as pernas e uns dez centímetros de coxa. Pernas grossas eram um requisito indispensável e quando eu já me considerava eleita fui recusada porque além das pernas – quesito no qual fui aprovada sem problemas – era preciso também ser bonita e eu, dentuça e branquela, não era. Para consolar minha tristeza, comecei a brincar com os instrumentos da banda e me descobri hábil no manejo das baquetas do tarol; uma das meninas me ensinou uns solos e daí a pouco eu era a nova sensação do ginásio, entre rufos e contratempos, fazendo o instrumento se destacar e ameaçando o reinado de uma tarolista do Colégio Pio XI que era considerada a melhor da cidade.

E aí, meu caro leitor, não tinha importância se eu era baixinha ou dentuça. O tarol vinha na frente da banda, na frente do colégio inteiro, na frente das decantadas “gregas” com suas pernas de fora. Os taróis (eram dois) desfilavam na extremidade direita e esquerda da banda, na primeira fila, uma posição de destaque, a glória suprema, onde o que valia era a habilidade e não as pernas grossas ou a cara bonita. Depois dos primeiros ensaios no interior do colégio saí orgulhosíssima para o primeiro ensaio nas ruas da cidade, alimentando a secreta esperança de que Dom Pedro reparasse em mim.

Mas deu tudo errado. Cidade pequena – a Campina Grande de quarenta anos atrás – a notícia logo chegou aos ouvidos de Papai que, quando cheguei da aula, proibiu minha nascente carreira marcial com uma frase seca: “Não quero filha minha tocando tambor pelo meio da rua”. E pronto. Novamente jogada para o último pelotão, sem tarol ou roupa de grega, só me restou desmaiar no sol quente e ser dispensada outra v z da formatura.

Eu jamais teria me lembrado disso tudo outra vez se não tivesse encontrado um dia desses aqui em Natal uma das “gregas”, hoje respeitável e obesa matrona de quase sessenta anos, cercada por duas filhas, sacolas de compras e um caminhão de netos. Quanto a Dom Pedro, nunca mais o vi, nem soube dele. A voraz passagem do tempo consumiu na minha memória o seu nome, deixando apenas o seu bigode feito a lápis, o lampejo da jaqueta azul num dia claro de sol e o grito de “Independência ou morte!” lançado pela sua garganta adolescente enquanto o cavalo negro erguia para o ar as patas indóceis.

Clotilde Tavares

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