Processo de três meses a três anos de cadeia

Ele pode pegar de três meses a três anos de cadeia por ter abaixado as calças no palco do municipal. O que você tem a ver com isso? Tudo.

Um diretor teatral se desloca da Europa para o Brasil, monta uma ópera em 17 dias (coisa que por lá, leva, às vezes 2, 3 anos para acontecer) e no dia da estréia é vaiado. Não que a vaia seja motivo para abaixar as calças. Mas não se tratava de uma vaia generalizada, dessas de quem não entendeu o espetáculo e desceu o pau. Antes fosse. Se tratava sim de uma vaia endereçada, uma vaia específica, racista e perniciosa.

O diretor teatral Gerald Thomas que encenou vários espetáculos no Brasil e no mundo está sendo vítima da mais perniciosa forma de controle da liberdade humana, e isso está acontecendo aqui no Brasil do Lula, bem debaixo de nossos narizes "democráticos". No Brasil que lutou contra a ditadura, que lutou para acabar com a censura (que teima em continuar existindo por meios próprios), que lutou para terminar de uma vez por todas com quaisquer tipos de controle da expressão e do direito do cidadão.

Estão usando a desculpa do "atentado ao pudor". Ora, caros senhores, atentado ao pudor acontece quando se abaixa as calças sem motivo qualquer, em lugar público qualquer. Atentado ao pudor é assistir a televisão brasileira fazer de tudo por Ibope. Inclusive mentir, criando falsos PCCs. Atentado ao pudor é saber que Paulo Maluf, Fernando Collor e tantos outros que roubaram o Brasil na cara dura, estão aí soltinhos da silva para fazer o que quiserem nas próximas eleições, pq o Brasil ainda não prevê uma lei que atue com eficiência para casos como esses. Por exemplo, impeachment deveria ter duração eterna. E um político corrupto NÃO deveria ter direito à cargo público de nenhum tipo para o resto da vida; principalmente quando fica comprovada a corrupção.

Aliás, atentado ao pudor mesmo é saber que nesse exato momento milhares de pessoas vivem na mais absoluta miséria. E miséria não é pobreza. Pobre eu também sou. Miséria é algo tão longe das nossas realidades que sequer sonhamos como ela possa ser de verdade. Alguém já tomou água morna com açúcar pela manhã, no lugar do café com leite e pão? Então, miséria é algo muito próximo a isso, e isso, quando se tem a água e o açúcar.

Com tantos problemas que ocorrem nos dias de hoje na cidade do Rio de Janeiro (e no resto do país) não soa um tanto revanchista obrigar alguém a responder um processo por um ato de pura ironia fina? Ou queriam que ele agisse como os jogadores de futebol, que saem esbofeteando até torcedor, quando se sentem ofendidos? Acho que o Brasil não está preparado para ter Gerald Thomas. Talvez ele saiba disso, mas - à convite- veio mais uma vez tentar mostrar arte bem feita.

Para quem não sabe quem ele é, que fique claro que é o artista mais inovador que surgiu nos palcos brasileiros nas últimas décadas. Há quem diga que depois dele, o teatro brasileiro nunca mais será o mesmo. Para quem não se lembra de sua importância, vale lembrar que ele leva o nome do Brasil na carteira de identidade e que faz questão de discutir nossos problemas sociais lá fora, com quem quer que seja, sempre que tem uma oportunidade. E isso acontece sempre, diga-se de passagem. Para quem não se lembra do que ele fez, basta olhar para Bete Coelho, Giulia Gam, Vera Holtz e tantos outros atores e atrizes que tiveram nele o mentor em seus inícios de carreira. Perguntem ao Paulo Autran (depois que ele se recuperar). Perguntem à Tônia Carrero. Perguntem a Caetano Veloso, Tom Zé, Antonio Dias, Tutty Vasques, Ziraldo. Se quiserem estender um pouco, perguntem aos inúmeros artistas internacionais com os quais Gerald trabalhou e trabalha até hoje.

Se isso é pouco, uma visita ao site dele pode ajudar. Veja os espetáculos que ele montou. Veja (mas veja bem) as fotos dos espetáculos. Depois responda a si mesmo se quem faz aquilo está brincando de trabalhar? Se quem monta espetáculos como os dele, tem tempo para perder com vaias racistas? Mas pergunte-se MESMO. E além disso: pergunte a si mesmo o que faria no lugar dele, quando depois de montar uma peça em tempo recorde, recebesse vaias racistas de presente?

Ele já pediu desculpas públicas, já fez o que queriam que ele fizesse: se humilhasse. Não satisfeitos vão levar a questão aos tribunais amanhã, dia 11/11. (Meu filho acaba de me lembrar que Bush matou metade do Iraque e está solto...)

Se isso é uma jogada anti-narcotráfico, já que a peça se trata de uma fusão de "Tristão e Isolda" com Freud, e Freud era usuário de cocaína e isso se passa na peça, escolheram o momento e a pessoa errada. Todos nós já sabemos que o narcotráfico só existe pq não entra em acordo com as leis vigentes de impostos. Duvida? Olhe para os bingos todos espalhados nas grandes cidades brasileiras. Não era proibido? Não era para ser? Não que eu seja contra. Muito pelo contrário: acho que as coisas devem estar expostas para quem quiser experimentar, pq aquilo que é escondido, não se sabe porquê, aguça muito mais o ser humano.

Ou se não for isso, me respondam pq o ácool é vendido sem problemas em qualquer boteco de esquina? Ou lembrem-se do que a lei seca fez dos EUA na época da depressão.

Se o Rio está preocupado com isso tudo a ponto de CENSURAR indiretamente uma peça que trate do assunto, é porquê sente que as coisas estão fugindo ao controle. E se elas fogem ao controle, é bom lembrar que quem cria cobra, costuma se picar. Ou pensaram que a EXCLUSÃO SOCIAL no Brasil iria gerar o quê? Grandes empreendedores? Do quê?

Ora, façam-me o favor: usem o dinheiro gasto em processos desse tipo para aparelhar melhor a polícia; dar ao povo do morro do Rio condições de trabalho digno e melhorar a educação nas escolas, para, quem sabe, num futuro próximo as pessoas consigam entender uma peça antes de pixá-la. E se pixarem, que seja para levantar uma discussão sobre o homem moderno e não por fascismo ou racismo, que além de ser um ato hediondo (este sim, e não mostrar a bunda), é covarde por não ter base sólida alguma em sua procedência. Ou alguém duvida da insanidade de Hitler?

Ou saber que Freud era usuário de cocaína choca tanto? Afinal de contas saber que o pai da psicanálise usava drogas coloca o trabalho dele em questão? O mesmo pergunto sobre Gerald: saber que ele mostrou a bunda em pleno municipal altera o que ele fez até hoje em seu ofício?

"Brasil hipócrita" é como seremos chamados logo, se deixarmos uma CENSURA (que já matamos) renascer de uma hora para outra como se fosse personagem de filme de terror B dos Eua.

Começo a pensar que se Van Gogh fosse brasileiro, teria sido processado ao cortar sua própria orelha. Até agora, a pessoa mais ferida nessa história é o próprio Gerald. O resto é "oba-oba" de quem adora ver o circo pegar fogo. Ou ver a bunda de um artista no palco faz mal para alguém? Que eu saiba, nunca fez.

Muito mais "pelada" é a situação do Gugu com o falso PCC. E não vi ninguém falar em prisão até agora. Sabe porquê? Pq rola muita grana por trás da coisa toda e muito jogo de interesse que pode estar "oculto" para a maioria dos brasileiros, mas não para todos. Mas estou vendo o PCC se levantar e matar policiais paulistanos durante a semana passada inteira...

Nós, brasileiros, podemos ter sido manipulados por muito tempo, mas hoje a coisa já não é assim. Ainda engatinhamos nessa nossa vontade de termos idéias próprias, pq o sistema não vai facilitar a disseminação da informação popular/de massa, como essa que usamos agora, para todos os brasileiros. Mas isso também não será por muito tempo. De posse da informação que um funcionário da Microsoft foi demitido por ter fotografado um caminhão enorme cheio de G5s (Power G5 é o computador da Apple, rival da Microsoft) chegando à Microsoft, prova que se não existe liberdade alguma, isso não acontece de forma igualitária. Na verdade, se fosse o caso, quem deveria ser despedido foi quem comprou as máquinas rivais. Mas até isso soa ridículo no terceiro milênio...

Sabedores disso, podemos fazer a liberdade existir a partir do momento que fizermos o papel destinado à cada um de nós na sociedade, que não é apenas nomear alguém para governar e dexiar esse alguém fazer o que quiser, apenas pq dá trabalho gerenciarmo-nos. Mas colocar nossa opinião pública na discussão, sim. Afinal de contas, é em nome dessa opinião que o mundo funciona e só nós não nos demos conta da importância disso até agora.

Se Gerald Thomas for condenado nesse processo estúpido movido pela promotoria do Rio, acho que teremos um grande problema com todas as bundas que aparecem na tv e que nem sempre estamos afim de ver; pior, não somos sequer consultados se queremos ou não vê-las; as bundas. E não adianta mudar de canal. Você estará trocando apenas de bundas. E me pergunto se alguém vai ter coragem de processar bundas globais, por exemplo?

Mas, afinal de contas, o que você tem a ver com isso?

Tudo, como eu coloquei acima. Lembre-se que esse país é seu, e que se você gosta de arte tanto quanto diz, deve começar a se preocupar, porquê é ela é produto da liberdade de expressão. Quando aceitamos que um fato desses, de censura e opressão aconteça, assim calados, não é apenas a arte que estamos ajudando a censurar, mas os seus criadores. E acho que não preciso dizer que sem eles, ela não existe.

Ana Peluso
escritora, poeta e incondicionalmente à favor da liberdade de expressão sem que excessões coniventes
prestem recursos à ela.

Site de Gerald Thomas: http://www.uol.com.br/geraldthomas/
Fórum para você opinar: http://cf5.uol.com.br/forum/thread.cfm?thread_id=10441

Enviado por Rosy Feros

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